HEGEL
O
Idealismo Lógico: Hegel Com o
idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança
logicamente o seu vértice metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo
romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser,
desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é
racionalizado por Hegel, elevado a processo dialético; e este processo
dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um processo circular, emanentista. Jorge
Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em
1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos
e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se
dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling,
afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas
universidades de Jena, Heidelberg e Berlim. Nessa
última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e
exercendo vasta influência. Faleceu em 1831 vítima
de cólera. Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e críticos,
para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado
prussiano. Em seus
últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o ridicularizaram
(apelidando-o de Absolutus von
Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da
imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era ao mesmo tempo suficientemente
prudente e sufucientemente hermético para que se
tornasse muito difícil fazer-lhe acusações precisas dessa ordem! O poeta
Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, conta, no entanto, que
ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante que lhe falava do Paraíso:
"O senhor então precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe enferma
e porque não envenenou ninguém!" Em todo caso, o futuro mostraria
amplamente que a filosofia do pensador oficial da monarquia escondia um
grande poder explosivo! Como a
filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total,
da imanência absoluta. A razão aqui não é apenas, como em Kant, o
entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as quais
pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das coisas, a
essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio
modo de ser das coisas: "O racional é real e o real é racional".
Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista por excelência,
uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si
inacessível) é, em definitivo, Ideia, Espírito. Sua filosofia representa, ao
mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do conhecimento, um retorno à
ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cada acontecimento
particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual
não é mais do que um aspecto ou um momento. Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um
filósofo essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Ideia
não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia que a
leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos
os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe
mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos homens, podem
ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que há de original em
seu idealismo é que, para Hegel, a ideia se manifesta como processo
histórico: "A história universal nada mais é do que a manifestação da
razão". As
principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A
Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um gênio
poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua capacidade sistemática,
tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do pensamento
contemporâneo. No entanto, frequentemente deforma os fatos para enquadrá-los
no esquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este
por interesses práticos e políticos. É preciso
compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser
de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se
desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a plena
posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no
final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza
identificava Deus com a natureza: Deus sive natura.
O panteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao
menos só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que
se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na
filosofia de Teilhard de Chardin).
Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se
nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia".
Consideremos a história da terra. De início só existem minerais, depois,
vegetais e, em seguida, animais. Não temos a impressão de que seres cada vez
mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no
Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a
si mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais
manifestamente como ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse
progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens.
Cada povo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa
desse progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência
confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele
consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de
instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo
que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se
descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa
para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel,
que pretende totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como Saber
Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos os saberes: a sabedoria
suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no
crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro de Minerva levanta voo). Compreendemos
bem, em todo caso, que, nessa filosofia puramente imanentista,
Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização
que triunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor
exprime o Espírito. Após ter saudado em Napoleão "o espírito universal a
cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo a expressão mais
perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham
que a força não "oprime" o direito (essa
fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que o
exprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais
dotado de valor e que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do
mundo". Segundo as
normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico
é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma
proposição fica demonstrada quando é reduzida, identificada a uma proposição
já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário,
é o domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele
o contradiz. Aplicar a razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a
mudança é aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à
história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo
isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano.
Como isso é possível? É possível
porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético -
no qual a contradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço,
mas, ao contrário, se transforma no próprio motor do pensamento, ao mesmo
tempo em que é o motor da história, já que esta última não é senão o
Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de
Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do qual uma
coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a contradição no
próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é
mais estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à
antítese e, daí, à síntese, como num diálogo em que a verdade surge a partir
da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se
opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que
não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á
finalmente transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma
"mediação" (síntese). A
Dialética A
dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo
tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas".
Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece
dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata
e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho
Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos
dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse
conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre.
Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser
absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição
se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois
contrários que engendram o devir (síntese), aí se reencontram fundidos,
reconciliados. Vejamos um
exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de
partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da
Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens lutam entre
si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando
assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa
arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário,
conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o
escravo, o "servus", aquele que, ao pé da
letra, foi conservado. a) O
senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O
senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu
fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do
mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O
senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de
seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de
seu trabalho, numa situação de submissão absoluta. b)
Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição
do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em função da
existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é porque é
reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do
trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu
escravo. c) De
fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu
senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai
encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que
só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a
libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal.
Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a
vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por
intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho
servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, transformado pelas
provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade
que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estoica se apresenta a Hegel
como a reconciliação entre o domínio e a servidão. Hegel
parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é
constituído substancialmente como sendo o construtor da
realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência,
porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum,
transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a
um monismo imanentista, que devia necessariamente
tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se
achar na realidade única da experiência as características divinas do antigo
Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao
panteísmo imanentista, que Schopenhauer,
o grande crítico do idealismo racionalista e otimista, declarará nada mais
ser que ateísmo imanentista. No
entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade
absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta
da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e
deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não
podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica),
idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o
mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem
verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia
ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de
Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são
condições de positividade e de bem. Apresentava-se,
portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder
racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que
há no mundo de arracional e de irracional. E por
isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental
é a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do
ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos resolve
e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo
elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não
esgotando o Absoluto de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese),
que nega e o qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui
começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da
antiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição
- como eram concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica
é considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a
ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.
Dispensa-se
acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia;
igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o
particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito
abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares. Estamos,
logo, perante um panlogismo, não estático, como o
de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o
monismo, que Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas imanentistas.
Podemos
resumir assim: 1.° - A lógica tradicional afirma que
o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de identidade e
de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é
essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto; 2.° - A lógica tradicional afirma que
o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente,
ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o
conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a
totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo; 3.° - A lógica tradicional distingue
substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da
história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica
hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser; 4.° - A lógica tradicional
distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser,
não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a
lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o
desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que no
espírito humano adquire plena consciência de si mesmo. Visto que
a realidade é o vir-a-ser dialético da Ideia, a
autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o
desenvolvimento lógico da ideia, e demonstrar a necessidade racional da
história natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e
síntese, não só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda
particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria
transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de
pensamento idealista e imanentista. Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Ideia teria acabado a sua odisseia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético. |