Grandes pensadores ERASMO
DE ROTERDÃ O ousado filósofo holandês anunciou o fim da predominância
religiosa na educação, defendeu a importância da leitura dos clássicos e o
desenvolvimento do homem em todo o seu potencial Márcio Ferrari Embora fosse clérigo e profundamente cristão, o
filósofo holandês Erasmo de Roterdã (1469-1536) passou para a história por se
opor ao domínio da Igreja sobre a educação, a cultura e a ciência. A
influência religiosa vigorou praticamente sem contestação durante toda a
Idade Média no Ocidente e ainda no tempo de Erasmo era preciso ousadia para
ir contra ela. De qualquer modo, ousadia individual fazia parte das atitudes
que um número crescente de intelectuais começava a enaltecer no período de
transição para a Idade Moderna, entre eles o filósofo holandês. O pensamento
nascente defendia a liberação da criatividade e da vontade do ser humano, em
oposição ao pensamento escolástico, segundo o qual todas as questões terrenas
deviam subordinar-se à religião. O antropocentrismo - o predomínio do humano sobre
o transcendente - era o eixo dessa nova filosofia, que seria posteriormente
conhecida sob o nome de humanismo. A palavra deriva da expressão latina studia humanitatis, que se
referia ao aprendizado, nas universidades, de poética, retórica, história,
ética e filosofia, entre outras disciplinas. Elas eram conhecidas como artes
liberais, porque se acreditava que dariam ao ser humano instrumentos para
exercer sua liberdade pessoal. O não-italiano
mais respeitado do Renascimento A mais típica cultura humanista se desenvolveu
nas cidades do norte da Itália, mas o espírito humanista irradiou-se por toda
a Europa. Entre os não-italianos, Erasmo foi seu
representante mais influente. "Ele era o intelectual mais respeitado e
prestigiado de seu tempo e sempre esteve ligado aos círculos de poder
europeus", diz Cézar de Alencar Arnaut de
Toledo, professor da Universidade Estadual de Maringá (PR). A fonte original de todo humanismo foi a literatura clássica. A época era de redescoberta e
reinterpretação da produção cultural da antigüidade
greco-romana. O interesse por esse período da história foi acompanhado por
uma série de mudanças profundas na vida européia: a revitalização das
cidades, a formação de redes de comércio entre centros distantes, a
consolidação de uma classe mercantil muito abastada, a criação de bancos e a
centralização do poder político em torno de cidades ou de reinos. Tudo isso
ocasionou a abertura de brechas na autoridade da Igreja, antes onipresente.
Por razões evidentes, esse período histórico de grandes transições ficou
conhecido como Renascimento, dando origem a uma produção cultural das mais
ricas e fecundas de todos os tempos (leia quadro). Erasmo se inseria no panorama cultural como um
símbolo da nova era. Num tempo em que os papas insuflavam guerras e
acumulavam fortunas e o clero dava fartas mostras de ostentação, hipocrisia e
arrogância, Erasmo pregou a volta aos valores cristãos originais, a começar
pela paz. Sua obra mais célebre, O Elogio da Loucura, é uma sátira à inversão
de valores que detectava na sociedade de seu tempo. A moralidade estava no
centro das preocupações do filósofo e deveria, de acordo com ele, ser a fonte
e o objetivo final da educação. Sua máxima: chegar à perfeição por meio do conhecimento
Erasmo criticava as escolas de seu tempo, em geral administradas
por clérigos que baseavam sua pedagogia em manuais imutáveis, repetições de
conceitos e princípios de disciplina com traços de sadismo. O filósofo via
nos livros um imenso tesouro cultural, que deveria constituir a base do
ensino. "Para Erasmo, a linguagem era o começo de toda boa educação, já
que é sinal da razão humana", afirma Cézar de Toledo. Não se trata
apenas de alfabetização e leitura, mas de interpretar os textos criticamente,
prática que os humanistas e reformadores religiosos introduziram na história
da pedagogia. Erasmo acreditava que um bom aprendizado das artes liberais até
os 18 anos prepararia o jovem para entender qualquer coisa com facilidade.
Como todo humanista, o pensador holandês defendia a possibilidade de chegar à
perfeição por via do conhecimento. "Erasmo prenuncia novos rumos para a
pedagogia ao deter um olhar mais acurado na infância", diz Toledo. Para
o filósofo, ao ensinar era necessário levar em conta a pouca idade da criança
- e por isso cercá-la de cuidados específicos - e também a índole de cada
uma. O programa pedagógico do filósofo era generoso, mas de modo
algum democrático. Segundo ele, apenas a instrução religiosa deveria ser para
todos, enquanto os estudos das artes liberais estariam restritos aos filhos
da elite, que futuramente teriam cargos decisórios. Com ele, a História ganhou papel
central na pedagogia As críticas de Erasmo ao clero, assim como seu
interesse pelos estudos da linguagem, o aproximaram de Martinho Lutero
(1483-1546), o monge alemão que deu origem ao protestantismo. Mas o filósofo
holandês combatia a idéia de predestinação de Lutero por acreditar firmemente
no livre-arbítrio dos seres humanos - todos são capazes de distinguir o bem e
o mal. Além disso, sempre pregou o diálogo entre as facções discordantes. No campo propriamente pedagógico, o interesse de
Erasmo pelo conhecimento das línguas antigas semeou o terreno para o estudo
do passado, em particular do Novo Testamento e dos primeiros pensadores do
cristianismo. A ênfase na história do homem e o estudo do passado ergueram um
dos principais pilares da educação moderna. A cultura medieval, ao contrário,
se construíra em torno do ideal de intemporalidade. A então recente invenção da impressora de tipos
móveis, pelo alemão Johannes Gutenberg,
entusiasmava Erasmo com a promessa de ampla circulação de textos da
literatura clássica. Ele via o conhecimento dos livros como alternativa
saudável à educação religiosa que recebera. Segundo Erasmo, o ensino que
havia conhecido "tentava ensinar humildade destruindo o espírito das
crianças". Outros valores renascentistas, como a exaltação
da beleza e do prazer, se encontravam em profusão nos clássicos. Para Erasmo,
esses princípios eram mais interessantes do que as abstrações da filosofia
escolástica. Além disso, dizia ele, o prazer físico e o bom humor não
conflitam com o cristianismo. Apesar da notoriedade de que desfrutou em vida,
Erasmo foi desprezado pelas gerações seguintes. Suas idéias seriam retomadas
pelo educador tcheco Comênio (1592-1670).
Cultivo simultâneo do corpo e do espírito; procura da harmonia e
do equilíbrio; elogio da vida ativa; busca do realismo, em todas as dimensões
(incluindo as negativas e abjetas); e surgimento do conceito de dignidade do
ser humano. Todos esses pilares humanistas, aliados aos investimentos
materiais de comerciantes e nobres, deram às artes - mais especificamente à
literatura e às artes plásticas - o ponto de convergência dos interesses do
humanismo. A filosofia e a ciência ficaram, até certo ponto, em segundo
plano, porque a obra artística passou a ser considerada manifestação
filosófica. Em particular na Itália, a pintura e a escultura atingiram a
perfeição pelas mãos de artistas como Sandro Botticelli, Rafael, Leonardo da
Vinci e Michelangelo.
Quer saber mais? CÉZAR DE ALENCAR ARNAUT DE TOLEDO, caatoledo@uem.br Bibliografia O ELOGIO DA LOUCURA, Erasmo de Roterdam, 194 págs., Ed. Martins Fontes, tel. (11)
3241-3677, 32 reais ERASMO DA CRISTANDADE, Roland H. Bainton, 386 págs., Ed. Calouste
Gulbenkian, tel. (11) 3258-5947 (Livraria Portugal,
importadora), 6,55 euros Biografia Geert Geertz - que depois adotaria o nome literário de Erasmo -
nasceu em 1469 em Roterdã, Holanda. Era
filho ilegítimo de um padre com a filha de um médico. Teve formação sólida
até se ordenar monge. Aos 26 anos, chegou a Paris para fazer seu doutorado e
hospedou-se entre os frades do Colégio Montaigu,
mas não suportou o regime de austeridade e desconforto. Isso o levou a
procurar sustento dando aulas particulares e organizando compêndios de
provérbios latinos, com os quais ganhou notoriedade. Em 1499 foi para a Inglaterra,
onde fez amizade com intelectuais como Thomas More. Na casa de More, anos
depois, escreveria sua obra-prima, O Elogio da Loucura. Convites de nobres e
atividades acadêmicas levaram Erasmo a viajar pela Europa até o fim da vida.
Por ter sido acusado por correligionários de ter inspirado Martinho Lutero a
se rebelar contra a Igreja, Erasmo se viu obrigado a entrar em polêmica
pública com o religioso alemão. O episódio se desdobrou em outras disputas
teológicas que continuaram até sua morte, em 1536, em Basiléia, na Suíça. A
obra mais importante de Erasmo sobre educação é Civilidade Pueril, de 1530. "Ninguém pode escolher os próprios pais ou a pátria, mas cada um pode
moldar sua personalidade pela educação" Para pensar Erasmo
recuperou a noção de que um dos objetivos do ensino é levar às novas gerações
o patrimônio da cultura humana contido nos livros. Costuma-se dizer que as
crianças e os jovens não gostam de ler. Mas
você já pensou que, quando os alunos se alfabetizam, eles ganham acesso a
todo o conhecimento acumulado ao longo da história? Dizer que podem fazer uso
disso como preferirem não seria um modo de estimulá-los a procurar os livros? "Toda educação saudável é uma educação sem controle religioso" |