A anamnese A anamnese ( do grego aná = trazer de novo e mnesis
= memória) é a parte mais importante da medicina pois envolve o núcleo da
relação médico-paciente, onde se apoia a parte
principal do trabalho médico; além disso preserva o lado humano da medicina e
orienta de forma correta o plano diagnóstico e terapêutico. A anamnese, em
síntese, é uma entrevista que tem por objetivo trazer de volta à mente todos
os fatos relativos ao doente e à doença. Não é, no entanto, o simples
registro de uma conversa. É mais que isto: é o resultado de uma conversação
com um objetivo explícito, conduzido pelo médico e cujo conteúdo foi
elaborado criticamente por ele. É a parte mais difícil do exame
clínico. Seu aprendizado é lento, só conseguido após a realização de dezenas
de entrevistas criticamente avaliadas. A anamnese é, na maioria dos
pacientes, o fator isolado mais importante para se chegar ao diagnóstico. Objetivos da Anamnese
A realização adequada da anamnese pressupõe a obediência
a uma série de requisitos básicos. REQUISITOS BÁSICOS A
medicina moderna, embora baseada em um grupo de ciências teóricas (biologia,
bioquímica, biofísica, etc.), é essencialmente uma ciência prática cujo
objetivo principal é ajudar pessoas doentes a se sentirem melhor; neste
contexto entender as doenças é secundário. Como em toda ciência a medicina
também têm suas unidades básicas de observação que são os sintomas e os sinais.
As quantidades básicas de medida são as palavras e o instrumento de
observação mais importante é o médico. O médico, como qualquer outro
instrumento científico, deve ser objetivo, preciso, sensível, específico e
reprodutível quando realiza suas observações a respeito da doença do
paciente. OBJETIVIDADE Ser objetivo durante a realização da anamnese significa
remover as próprias crenças, pré-julgamentos e preconceitos antes da
realização da observação. Significa cuidar para que não ocorram viéses ou distorção sistemática de uma observação. Outros
conceitos relacionados diretamente com a objetividade são Acurácia
e Validade. A observação deve corresponder àquilo que o paciente realmente
sente e experimenta. A pequena história a seguir (adaptada de “The Medical Interview. A
primer for Students of the Art. Coulehan JL and
Block MR. 2nd Ed. F.A. Davis, 1992, capítulo
2) ilustra este ponto: O residente X esta no ambulatório de Pneumologia
e irá consultar um paciente portador de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Dr: Bom Dia ! Sou o Dr. X. O Sr.
é Y Pcte: Sim, prazer em conhece-lo. Dr.: Como o Sr. esta passando ? Pcte: Não tenho passado bem neste dois últimos anos. Nada parece estar funcionando
direito. Dr: O que estápior
? Pcte: Minhas pernas. Tenho dores
constantes nas minhas pernas. Esta tão ruim que eu não consigo dormir. Dr: E a falta de ar ? Pcte: Oh! Tudo bem. Não tenho tido
crises. Estou sentindo dores nas minhas pernas. Dr: O Sr. esta fumando ? Pcte: Sim. Com esta dor voltei a
fumar. Mas estou fumando menos de um maço por dia. Dr: O Sr. esta sentindo dores no
peito ? Pcte: Não Dr: Tem tido tosse ? Pcte: Não. Raramente tenho
apresentado tosse. Dr: Quanto de atividade física o
Sr. consegue realizar ? Pcte: Bem, eu conseguia fazer tudo
até 2 anos atrás, mas agora mal consigo caminhar dois quarteirões. Dr: Por qual motivo ? Pcte: Minhas pernas. Elas doem. Dr: Elas incham ? Pcte: Elas estão um pouco inchadas
nestas últimas 2 ou 3 semanas, mas a dor continua estando
ou não inchadas. Dr: Tudo bem! Agora vou perguntar
ao Sr. algumas questões a respeito da sua saúde geral... O médico desta pequena história esta cometendo um erro
importante ao ignorar a dor que o paciente sente nas pernas. O médico da
nossa história não esta realmente ouvindo o paciente. O fato de saber que o paciente é portador
de DPOC fez com que dirigisse o interrogatório para o aparelho respiratório,
o que representa uma atitude anti-científica podendo
levar a um erro diagnóstico. Além do mais o paciente se sentirá ignorado,
podendo negar dados importantes para o estabelecimento do diagnóstico. A mesma história poderia ser corretamente feita da
seguinte forma: Dr: Bom dia ! Sou o Dr. X. O Sr. é Y Pcte: Sim. Prazer em conhecê-lo. Dr: Obrigado, igualmente. Qual o
problema que esta acontecendo com o Sr ? Pcte: Eu não estou muito bem há
cerca de 2 anos. Nada parece funcionar bem. Dr: Qual o principal problema que
o aflige ? Pcte: Minhas pernas. Tenho dores
constantes nas minhas pernas. Elas estão tão ruins que não consigo dormir. Dr: Dores nas pernas. Conte-me
mais a respeito. Pcte: Bem, elas estão tão ruins que
não consigo caminhar mais que um quarteirão. Dr: O Sr. esta dizendo que a dor
o obriga a
parar a caminhada ? Pcte: Sim. Elas melhoram quando
paro, mas a dor não desaparece totalmente. Mesmo a noite, quando estou
dormindo, as dores me acordam. O paciente aqui esta fornecendo uma história
consistente com doença vascular periférica e o médico esta fornecendo a
devida atenção. Ser objetivo requer, em primeiro lugar, ouvir efetivamente o
que o paciente esta dizendo e, em segundo lugar, fornecer o retorno ao
paciente; em outras palavras deixar o paciente saber que você esta ouvindo o
que ele esta dizendo INTERPRETAÇÃO E OBSERVAÇÃO É muito fácil confundir observação com interpretação.
Observação é aquilo que o paciente realmente diz ou faz; as palavras do
paciente são os dados primários dos sintomas. Não é incomum encontrarmos no ambiente médico termos que são interpretações e não
descrições, p. ex. o termo angina significa certo tipo de dor torácica
devido à insuficiência coronariana. O dado primário deveria ser algo como:
desconforto ou dor subesternal de natureza
opressiva com duração de cerca de 3 minutos, iniciada pelo exercício físico e
aliviada pelo repouso. Quando se produz a interpretação prematuramente
perde-se a objetividade do dado e formula-se um diagnóstico que pode não
estar correto. Objetividade significa não somente separar a nossa
interpretação do dado objetivo, mas também separar a interpretação do
paciente. É importante lembrarmos este ponto quando o paciente chega
contando-nos que a sua úlcera esta doendo ou que seu coração esta causando
sérios problemas à sua vida. Nesta situação o paciente esta interpretando
certos sintomas ou reportando um diagnóstico ao invés de fornecer o dado
objetivo. Exemplo: Paciente do sexo feminino com 68 anos de idade, há 6 anos
vive com o diagnóstico de “angina” (doença coronariana) porque o seu médico
não ouviu atentamente a sua história que foi a seguinte: Dr. Conte-me a respeito da sua dor no peito ? Pcte: É uma dor em aperto aqui no
meio do tórax e sobe queimando até a minha garganta. Às vezes dói um pouco no
braço e nas costas. Dr: Quando a dor aparece ? Pcte: Aparece nos
mais diferentes momentos e situações. Algumas vezes aparece no meio da noite. Dr: A dor tem relação com o
exercício físico ? Pcte: Não. A dor aparece mesmo eu
estando em repouso. Mesmo
tendo em vista que a paciente nunca apresentou dor torácica aos
exercícios, foi realizado investigação cardiológica, completa incluíndo a angiografia coronariana. Apesar de todos os
exames terem sido negativos, a paciente recebeu o diagnóstico de doença
arterial coronariana. Posteriormente, outro médico foi consultado e tendo achado que
a história da paciente não era compatível com o diagnóstico, realizou
investigação radiológica do esôfago e estomago, tendo sido estabelecido a
existência de refluxo e espasmo
esofagiano. Após 6 anos de convivência com o diagnóstico de insuficiência
coronariana, a paciente não acreditou que nada tinha no coroção
e não conseguiu ser reabilidada para uma vida
ativa. PRECISÃO Refere-se a quanto a observação dispersa-se
ao redor do valor "real". Aqui estamos lidando com o erro ao acaso,
não sistemático, induzido pela falta de atenção ao detalhe, pela audição desatenta
e pela falta de objetividade. As unidades básicas de medida quando tiramos
uma história clínica são as palavras. Palavras são descrições de sensações
percebidas pelo paciente e comunicadas ao médico. Palavras são mensurações
verbais e devem ser entendidas precisamente; devem ser tão detalhadas quanto
possível. O paciente pode se queixar de "cansaço" e nesta situação
é necessário esclarecer do que se trata: falta de ar, fraqueza muscular,
falta de vontade de realizar atividades físicas, ou falta de repouso
adequado. O médico precisa esclarecer qual a real sensação que o paciente
esta experimentando fazendo perguntas do tipo: o que você quer dizer com
"cansaço" ? Você pode me dizer mais sobre este cansaço ou como você
descreveria o que você sente sem utilizar a palavra cansaço. SENSIBILIDADE E ESPECIFICIDADE Sensibilidade de um teste expressa a sua capacidade de
identificar casos verdadeiros da doença. Quanto maior a sensibilidade, maior
a porcentagem de casos que o teste identifica acuradamente
como sendo positivo. Especificidade de um teste expressa a sua capacidade de
descartar a doença em indivíduos normais. Quanto maior a especificidade maior
a chance de um resultado negativo representar um indivíduo normal sem doença.
Poucos testes em medicina apresentam 100% de sensibilidade e especificidade.
A entrevista clínica encontra-se longe destes valores. Um sintoma pode ser
muito sensível (tosse em casos de pneumonia) mas pouco específico (inúmeras
doenças produzem tosse); pode ser específico (a dor epigástrica noturna
aliviada pela alimentação em casos de úlcera duodenal) mas pouco sensível ( muitas pessoas com úlcera duodenal não apresentam este
sintoma). Entretanto, sintomas individuais não são as unidades apropriadas
nas quais se basear para a tomada de decisão;
devemos nos basear em conjuntos de sintomas, padrões ou quadros clínicos.
Devemos considerar a reconstrução detalhada da doença no lugar de
valorizarmos um sintoma isolado. Um complexo sintomático ( conjunto
de sintomas que caracterizam uma doença) é suficientemente sensível e
específico para permitir a realização do diagnóstico e da terapêutica. A história clínica obtida com objetividade e precisão
fornece um conjunto de dados que permitem delinear um eficiente (e pequeno)
plano diagnóstico. REPRODUTIBILIDADE A reprodutibilidade é outra importante característica dos
procedimentos científicos, incluindo a entrevista clínica. Não é raro
observarmos um grau significativo de variabilidade quando a mesma história
clínica é obtida por médicos diferentes. Parte das
discrepâncias podem ser explicadas pelo fato de que os indivíduos
apresentam diferentes níveis de precisão e acurácia
quando realizam a observação clínica. Outros fatores envolvidos podem ser
atribuídos ao processo de reconstrução da história que melhora à medida que
são obtidas histórias ou mesmo ao processo de aprendizado a que o paciente é
submetido à medida que interage com a equipe de saúde. Por fim, parte pode
ser debitada às diferentes capacidades dos médicos em interagir de forma empática
com o paciente, obtendo as informações sem dificuldades maiores. ENTENDENDO E SENDO ENTENDIDO
CORRETAMENTE Entender o paciente e ao mesmo ser entendido por ele é
absolutamente indispensável para o obtenção de uma
história clínica adequada. Inúmeros fatores podem interferir com o
entendimento perfeito. As diferenças culturais, religiosas, raciais, de idade
e etc. entre médico e paciente constituem as dificuldades normais que tem que
ser constantemente avaliadas para serem superadas. Outras dificuldades
decorrem da técnica de entrevista. Para que ocorra entendimento perfeito
entre médico e paciente e necessário que os dois estejam sintonizados na
mesma freqüência emocional. Neste contexto podemos destacar três qualidades
que o médico deve desenvolver para melhorar a comunicação entre ele e o
paciente: respeito, sinceridade e empatia. RESPEITO A capacidade de ter respeito é conseguir separar os
sentimentos pessoais sobre o comportamento, as atitudes ou as crenças do
paciente, da tarefa fundamental do médico que é auxiliar o paciente a ficar
melhor. Pequenos procedimentos devem ser utilizados para demonstrar respeito
ao paciente:
SINCERIDADE Significa não pretender ser alguém ou algo diferente
daquilo que você é. Significa ser exatamente quem você é pessoal e
profissionalmente. O estudante deve sempre se apresentar como tal e nunca
pretender assumir o papel do médico que ele ainda não é. EMPATIA É compreensão. Significa colocar-se no lugar do paciente
e realizar um esforço para compreendê-lo de forma integral. Para que o
relacionamento empático se estabeleça é necessário que o
preste atenção em todos os aspectos da comunicação com o paciente:
palavras, sentimentos, gestos, etc. Uma vez estabelecida a comunicação
empática o paciente fornecerá, não somente dados acurados, mas permitirá a
emersão de sentimentos e crenças. NÍVEIS DE RESPOSTA Para que o médico mantenha a comunicação empática com o
paciente é importante que as respostas, principalmente aos sentimentos que o
paciente expõe, sejam adequadas. Quatro categorias ou níveis de resposta
devem ser consideradas:
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