A anamnese

A anamnese ( do grego aná = trazer de novo e mnesis = memória) é a parte mais importante da medicina pois envolve o núcleo da relação médico-paciente, onde se apoia a parte principal do trabalho médico; além disso preserva o lado humano da medicina e orienta de forma correta o plano diagnóstico e terapêutico. A anamnese, em síntese, é uma entrevista que tem por objetivo trazer de volta à mente todos os fatos relativos ao doente e à doença. Não é, no entanto, o simples registro de uma conversa. É mais que isto: é o resultado de uma conversação com um objetivo explícito, conduzido pelo médico e cujo conteúdo foi elaborado criticamente por ele.  É a parte mais difícil do exame clínico. Seu aprendizado é lento, só conseguido após a realização de dezenas de entrevistas criticamente avaliadas.  A anamnese é, na maioria dos pacientes, o fator isolado mais importante para se chegar ao diagnóstico.

Objetivos da Anamnese

  1. Estabelecer a relação médico/paciente.
  2. Obter os elementos essenciais da história clínica.
  3. Conhecer os fatores pessoais, familiares e ambientais relacionados com o processo saúde/doença.
  4. Obter os elementos para guiar o médico no exame físico.
  5. Definir a estratégia de investigação complementar.
  6. Direcionar a terapêutica em função do entendimento global a respeito do paciente.

 

A realização adequada da anamnese pressupõe a obediência a uma série de requisitos básicos.

 

REQUISITOS BÁSICOS

 A medicina moderna, embora baseada em um grupo de ciências teóricas (biologia, bioquímica, biofísica, etc.), é essencialmente uma ciência prática cujo objetivo principal é ajudar pessoas doentes a se sentirem melhor; neste contexto entender as doenças é secundário. Como em toda ciência a medicina também têm suas unidades básicas de observação que são os sintomas e os sinais. As quantidades básicas de medida são as palavras e o instrumento de observação mais importante é o médico. O médico, como qualquer outro instrumento científico, deve ser objetivo, preciso, sensível, específico e reprodutível quando realiza suas observações a respeito da doença do paciente.

 

OBJETIVIDADE

Ser objetivo durante a realização da anamnese significa remover as próprias crenças, pré-julgamentos e preconceitos antes da realização da observação. Significa cuidar para que não ocorram viéses ou distorção sistemática de uma observação. Outros conceitos relacionados diretamente com a objetividade são Acurácia e Validade. A observação deve corresponder àquilo que o paciente realmente sente e experimenta.

A pequena história a seguir (adaptada de  The Medical Interview. A primer for Students of the Art. Coulehan JL and Block MR. 2nd Ed. F.A. Davis, 1992, capítulo 2) ilustra este ponto:

 

O residente X esta no ambulatório de Pneumologia e irá consultar um paciente portador de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica.

Dr: Bom Dia ! Sou o Dr. X. O Sr. é  Y

Pcte: Sim, prazer em conhece-lo.

Dr.: Como o Sr. esta passando ?

Pcte: Não tenho passado bem neste dois últimos anos. Nada parece estar funcionando direito.

Dr: O que estápior ?

Pcte: Minhas pernas. Tenho dores constantes nas minhas pernas. Esta tão ruim que eu não consigo dormir.

Dr: E a falta de ar ?

Pcte: Oh! Tudo bem. Não tenho tido crises. Estou sentindo dores nas minhas pernas.

Dr: O Sr. esta fumando ?

Pcte: Sim. Com esta dor voltei a fumar. Mas estou fumando menos de um maço por dia.

Dr: O Sr. esta sentindo dores no peito ?

Pcte: Não

Dr: Tem tido tosse ?

Pcte: Não. Raramente tenho apresentado tosse.

Dr: Quanto de atividade física o Sr. consegue realizar ?

Pcte: Bem, eu conseguia fazer tudo até 2 anos atrás, mas agora mal consigo caminhar dois quarteirões.

Dr: Por qual motivo ?

Pcte: Minhas pernas. Elas doem.

Dr: Elas incham ?

Pcte: Elas estão um pouco inchadas nestas últimas 2 ou 3 semanas, mas a dor continua estando ou não inchadas.

Dr: Tudo bem! Agora vou perguntar ao Sr. algumas questões a respeito da sua saúde geral...

 

O médico desta pequena história esta cometendo um erro importante ao ignorar a dor que o paciente sente nas pernas. O médico da nossa história não esta realmente ouvindo o paciente.  O fato de saber que o paciente é portador de DPOC fez com que dirigisse o interrogatório para o aparelho respiratório, o que representa uma atitude anti-científica podendo levar a um erro diagnóstico. Além do mais o paciente se sentirá ignorado, podendo negar dados importantes para o estabelecimento do diagnóstico.

A mesma história poderia ser corretamente feita da seguinte forma:

Dr:  Bom dia ! Sou o Dr. X. O Sr. é Y

Pcte: Sim. Prazer em conhecê-lo.

Dr: Obrigado, igualmente. Qual o problema que esta acontecendo com o Sr ?

Pcte: Eu não estou muito bem há cerca de 2 anos. Nada parece funcionar bem.

Dr: Qual o principal problema que o aflige ?

Pcte: Minhas pernas. Tenho dores constantes nas minhas pernas. Elas estão tão ruins que não consigo dormir.

Dr: Dores nas pernas. Conte-me mais a respeito.

Pcte: Bem, elas estão tão ruins que não consigo caminhar mais que um quarteirão.

Dr: O Sr. esta dizendo que a dor o obriga  a parar a caminhada ?

Pcte: Sim. Elas melhoram quando paro, mas a dor não desaparece totalmente. Mesmo a noite, quando estou dormindo, as dores me acordam.

O paciente aqui esta fornecendo uma história consistente com doença vascular periférica e o médico esta fornecendo a devida atenção. Ser objetivo requer, em primeiro lugar, ouvir efetivamente o que o paciente esta dizendo e, em segundo lugar, fornecer o retorno ao paciente; em outras palavras deixar o paciente saber que você esta ouvindo o que ele esta dizendo

 

INTERPRETAÇÃO E OBSERVAÇÃO

É muito fácil confundir observação com interpretação. Observação é aquilo que o paciente realmente diz ou faz; as palavras do paciente são os dados primários dos sintomas. Não é incomum encontrarmos no ambiente médico termos que são interpretações e não descrições, p. ex. o termo angina significa certo tipo de dor torácica devido à insuficiência coronariana. O dado primário deveria ser algo como: desconforto ou dor subesternal de natureza opressiva com duração de cerca de 3 minutos, iniciada pelo exercício físico e aliviada pelo repouso. Quando se produz a interpretação prematuramente perde-se a objetividade do dado e formula-se um diagnóstico que pode não estar correto.

Objetividade significa não somente separar a nossa interpretação do dado objetivo, mas também separar a interpretação do paciente. É importante lembrarmos este ponto quando o paciente chega contando-nos que a sua úlcera esta doendo ou que seu coração esta causando sérios problemas à sua vida. Nesta situação o paciente esta interpretando certos sintomas ou reportando um diagnóstico ao invés de fornecer o dado objetivo.

Exemplo:

Paciente do sexo feminino com 68 anos de idade, há 6 anos vive com o diagnóstico de “angina” (doença coronariana) porque o seu médico não ouviu atentamente a sua história que foi a seguinte:

Dr. Conte-me a respeito da sua dor no peito ?

Pcte: É uma dor em aperto aqui no meio do tórax e sobe queimando até a minha garganta. Às vezes dói um pouco no braço e nas costas.

Dr: Quando a dor aparece ?

Pcte: Aparece nos mais diferentes momentos e situações. Algumas vezes aparece no meio da noite.

Dr: A dor tem relação com o exercício físico  ?

Pcte: Não. A dor aparece mesmo eu estando em repouso.

Mesmo  tendo em vista que a paciente nunca apresentou dor torácica aos exercícios, foi realizado investigação cardiológica, completa incluíndo a angiografia coronariana. Apesar de todos os exames terem sido negativos, a paciente recebeu o diagnóstico de doença arterial coronariana. Posteriormente, outro médico foi consultado  e tendo achado que a história da paciente não era compatível com o diagnóstico, realizou investigação radiológica do esôfago e estomago, tendo sido estabelecido a existência de refluxo  e espasmo esofagiano. Após 6 anos de convivência com o diagnóstico de insuficiência coronariana, a paciente não acreditou que nada tinha no coroção e não conseguiu ser reabilidada para uma vida ativa.

 

PRECISÃO

Refere-se a quanto a observação dispersa-se ao redor do valor "real". Aqui estamos lidando com o erro ao acaso, não sistemático, induzido pela falta de atenção ao detalhe, pela audição desatenta e pela falta de objetividade. As unidades básicas de medida quando tiramos uma história clínica são as palavras. Palavras são descrições de sensações percebidas pelo paciente e comunicadas ao médico. Palavras são mensurações verbais e devem ser entendidas precisamente; devem ser tão detalhadas quanto possível. O paciente pode se queixar de "cansaço" e nesta situação é necessário esclarecer do que se trata: falta de ar, fraqueza muscular, falta de vontade de realizar atividades físicas, ou falta de repouso adequado. O médico precisa esclarecer qual a real sensação que o paciente esta experimentando fazendo perguntas do tipo: o que você quer dizer com "cansaço" ? Você pode me dizer mais sobre este cansaço ou como você descreveria o que você sente sem utilizar a palavra cansaço.

 

SENSIBILIDADE E ESPECIFICIDADE

Sensibilidade de um teste expressa a sua capacidade de identificar casos verdadeiros da doença. Quanto maior a sensibilidade, maior a porcentagem de casos que o teste identifica acuradamente como sendo positivo. Especificidade de um teste expressa a sua capacidade de descartar a doença em indivíduos normais. Quanto maior a especificidade maior a chance de um resultado negativo representar um indivíduo normal sem doença. Poucos testes em medicina apresentam 100% de sensibilidade e especificidade. A entrevista clínica encontra-se longe destes valores. Um sintoma pode ser muito sensível (tosse em casos de pneumonia) mas pouco específico (inúmeras doenças produzem tosse); pode ser específico (a dor epigástrica noturna aliviada pela alimentação em casos de úlcera duodenal) mas pouco sensível ( muitas pessoas com úlcera duodenal não apresentam este sintoma). Entretanto, sintomas individuais não são as unidades apropriadas nas quais se basear para a tomada de decisão; devemos nos basear em conjuntos de sintomas, padrões ou quadros clínicos. Devemos considerar a reconstrução detalhada da doença no lugar de valorizarmos um sintoma isolado. Um complexo sintomático ( conjunto de sintomas que caracterizam uma doença) é suficientemente sensível e específico para permitir a realização do diagnóstico e da terapêutica.

A história clínica obtida com objetividade e precisão fornece um conjunto de dados que permitem delinear um eficiente (e pequeno) plano diagnóstico.

 

REPRODUTIBILIDADE

A reprodutibilidade é outra importante característica dos procedimentos científicos, incluindo a entrevista clínica. Não é raro observarmos um grau significativo de variabilidade quando a mesma história clínica é obtida por médicos diferentes. Parte das discrepâncias podem ser explicadas pelo fato de que os indivíduos apresentam diferentes níveis de precisão e acurácia quando realizam a observação clínica. Outros fatores envolvidos podem ser atribuídos ao processo de reconstrução da história que melhora à medida que são obtidas histórias ou mesmo ao processo de aprendizado a que o paciente é submetido à medida que interage com a equipe de saúde. Por fim, parte pode ser debitada às diferentes capacidades dos médicos em interagir de forma empática com o paciente, obtendo as informações sem dificuldades maiores.

 

ENTENDENDO E SENDO ENTENDIDO CORRETAMENTE

Entender o paciente e ao mesmo ser entendido por ele é absolutamente indispensável para o obtenção de uma história clínica adequada. Inúmeros fatores podem interferir com o entendimento perfeito. As diferenças culturais, religiosas, raciais, de idade e etc. entre médico e paciente constituem as dificuldades normais que tem que ser constantemente avaliadas para serem superadas. Outras dificuldades decorrem da técnica de entrevista. Para que ocorra entendimento perfeito entre médico e paciente e necessário que os dois estejam sintonizados na mesma freqüência emocional. Neste contexto podemos destacar três qualidades que o médico deve desenvolver para melhorar a comunicação entre ele e o paciente: respeito, sinceridade e empatia.

 

RESPEITO

A capacidade de ter respeito é conseguir separar os sentimentos pessoais sobre o comportamento, as atitudes ou as crenças do paciente, da tarefa fundamental do médico que é auxiliar o paciente a ficar melhor. Pequenos procedimentos devem ser utilizados para demonstrar respeito ao paciente:

  1. Apresentar-se com clareza e deixar claro por qual motivo você esta ali.
  2. Não demonstre intimidade que você não tem com o paciente. Utilize sempre o nome do paciente e nunca utilize apelidos genéricos como "tia", "mãe", "avó" etc.
  3. Garanta o conforto e a privacidade do paciente.
  4. Sente-se próximo, mas não excessivamente, e no mesmo nível do paciente. Evite a presença de barreira física entre você o paciente (mesas, macas, etc.)
  5. Avise sempre que for realizar uma mudança na condução da entrevista ou uma manobra nova ou dolorosa no exame físico.
  6. Responda ao paciente de forma a deixar registrado que você o esta ouvindo atentamente.

 

SINCERIDADE

Significa não pretender ser alguém ou algo diferente daquilo que você é. Significa ser exatamente quem você é pessoal e profissionalmente. O estudante deve sempre se apresentar como tal e nunca pretender assumir o papel do médico que ele ainda não é.

 

EMPATIA

É compreensão. Significa colocar-se no lugar do paciente e realizar um esforço para compreendê-lo de forma integral. Para que o relacionamento empático se estabeleça é necessário que o preste atenção em todos os aspectos da comunicação com o paciente: palavras, sentimentos, gestos, etc. Uma vez estabelecida a comunicação empática o paciente fornecerá, não somente dados acurados, mas permitirá a emersão de sentimentos e crenças.

 

NÍVEIS DE RESPOSTA

Para que o médico mantenha a comunicação empática com o paciente é importante que as respostas, principalmente aos sentimentos que o paciente expõe, sejam adequadas. Quatro categorias ou níveis de resposta devem ser consideradas:

  1. Ignorando – quando o médico não ouve o que o paciente disse ou age como se não tivesse ouvido. Não existe resposta aos sintomas ou sentimentos expostos pelo paciente.
  2. Minimizando – o médico responde aos sintomas ou sentimentos expostos pelo paciente diminuindo a sua importância ou intensidade.
  3. Intercambiando – o médico reconhece os sintomas e sentimentos expressos pelo paciente de forma adequada e responde no mesmo nível de intensidade. A resposta de intercâmbio é um objetivo importante no processo de obtenção da história clínica. Em termos práticos significa a repetição das palavras do próprio paciente de forma a demonstrar que o médico esta entendendo o que o paciente esta tentando dizer.
  4. Adicionando – o médico reconhece o que o paciente esta tentando expressar e também aquilo que o paciente pode estar sentindo mas não consegue expressar.