O advento HOMEM-MASSA Renato Nunes
Bittencourt
- doutor
em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do curso de Comunicação Social da
Faculdade CCAA. Na decadente conjuntura da
degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas,
vivemos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual se dilui
todo destaque pessoal, todo brilho singular. As inúmeras transformações sociais e
valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do
ideário aristocrático e sua substituição pela visão
de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração
da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social.
Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana
se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de
característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade",
estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição
individual. Ortega y Gasset
foi um dos principais filósofos a problematizar a questão da massificação da
cultura na modernidade ocidental, e suas diversas implicações na esfera
simbólica e social da vida humana. Ao criar o conceito de
"homem-massa", o filósofo forneceu um importante aparato
intelectual para compreendermos de que maneira vivemos sob a égide moralista
do nivelamento humano, e de que forma nossa criação cultural se submeteu a
tais parâmetros normativos motivando, assim, nada mais do que o
empobrecimento existencial e a legitimação do grotesco. Para Ortega y Gasset, "de repente a multidão tornou-se visível,
instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia,
passava despercebida. Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se
às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonistas, só
coro" (A Rebelião das Massas, p. 43). A configuração valorativa do
"homem-massa" não segue parâmetros sociais ou econômicos
específicos É importante destacar que a
configuração valorativa do "homem-massa" não segue parâmetros
sociais ou econômicos específicos, mas a análise da existência ou não de uma
nobreza de espírito interior. Assim, uma pessoa detentora de posses
materiais, caso avalie sua existência pelos parâmetros quantitativos da
ganância, da falta de finesse e da
degradação do gosto cultural, associa-se ao grupo dos
"homens-massa"; por sua vez, uma pessoa desprovida de instrução
formal e de bens materiais, mas que é dotada de espírito avaliativo e
sensibilidade cultural para apreciar aquilo que é belo ou sublime, se encontra longe da esfera vulgar da tipologia da
massa, caracterizada justamente pela ausência de critérios seletivos em suas
avaliações. Para Ortega y Gasset, "massa é
todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões
especiais, mas que se sente como todo "mundo" e, certamente, não se
angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais" (A Rebelião
das Massas, p. 45). FILISTEU DA CULTURA FILISTEU DA CULTURA é o tipo humano que avalia as criações
superiores do espírito humano a partir de critérios puramente materiais,
mensurando sob o mesmo padrão avaliativo a Arte, a Cultura e as necessidades
corriqueiras da existência. Encontramos no "filisteu da
cultura" um dos principais avatares do
"homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset
em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado
pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente
por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz
plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo
capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de
projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser
contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao
"filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as
determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio
social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os
louros da vitória. O desenvolvimento da indústria
promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema
de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações
culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela
obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre
quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais,
pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro
imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim
meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo
comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se
manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação
empresarial. A burocracia nos diversos setores
sociais também é fruto da ação deletéria do "homem-massa", pois
impede que as ações humanas se desenvolvam com a agilidade necessária para
que elas motivem a transformação para melhor da sociedade. A burocracia
institucionalizada faz que as forças criativas dos indivíduos se cristalizem
e, por conseguinte, fiquem estagnadas. Quando o espírito burocrático atua no
âmbito do sistema educacional, por exemplo (veja box
abaixo), os malefícios intelectuais são evidentes: ausência de estímulo para
a constante superação das competências profissionais, submissão aos valores normativos
estabelecidos, supressão dos ideais progressistas e desmotivação intelectual.
Um dos maiores responsáveis para essa degradação da experiência de
ensino ocorre pela interferência de questões alheias ao desenvolvimento do
saber e da troca de conhecimentos na realidade pedagógica, ao se criar
parâmetros avaliativos para a classe de estudantes, homogeneizada em sua
raiz, e para o próprio professor, obrigado a se submeter a um sistema
castrador de seu próprio potencial didático. FAVORECER O COMUM Ora, uma vez que a estrutura escolar
não pretende favorecer o desenvolvimento da exceção, mas o comum, não é
estranho vermos a instituição de ensino como um instrumento promotor da
estagnação das forças criativas dos indivíduos. Projetos educacionais e planejamentos
econômicos são instâncias diametralmente opostas, mas na realidade da
sociedade de massas tal intercessão é a regra. Quando uma instituição de
ensino promove a facilitação dos conteúdos didáticos como forma de promover a
progressão dos estudantes, ela gera a supressão da disciplina intelectual
necessária para que o aluno possa continuamente se esforçar em prol da
aquisição de novos patamares cognitivos. Tal como afirma Ortega y Gasset, "o 'homem-massa' jamais teria apelado para
qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse forçado
violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o eterno
'homem-massa', de acordo com sua índole, deixa de apelar e se sente senhor de
sua vida" (A Rebelião das Massas, p. 95). A sociedade tecnicista faz triunfar
os valores da massificação da cultura e o nivelamento por baixo entre os
indivíduos, pois o ato de despertar da singularidade é considerado
prejudicial para a manutenção da ordem pública, que se sustenta pela
homogeneização dos comportamentos e qualidades humanas. Por conseguinte,
vive-se sob o império moralista da "igualdade absoluta", pois nesse
sistema de padronização extrínseco da vida humana é considerado como
algo moralmente indecente a singularização individual. Conforme destaca
Ortega y Gasset: "a massa faz sucumbir tudo o
que é diferente, egrégio, individual, qualificado e especial. Quem não for
como todo mundo, quem não pensar como todo mundo, correrá
o risco de ser eliminado" (A Rebelião das Massas, p. 48). Estamos sob a constante ameaça de,
na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento
vulgar das qualidades humanas, vivermos sob o jugo da "ditadura da
massificação", na qual é diluído todo destaque pessoal, todo brilho
singular. Esse sistema normativo impede o florescimento de disposições agonísticas entre os indivíduos, processos rigorosamente
interativos que, mediante o embate de qualidades, faz vencer aquele que no
momento da oposição é o mais apto. Entretanto, o espírito massificado não
quer "viver perigosamente" e, desprovido de sentimentos que
instigam ações transformadoras, vive confortavelmente na sua medíocre
banalidade existencial. Dessa maneira, ocorre a vitória social do
"homem-massa" que, incapaz de se realizar como ser humano no decorrer
da sua existência e se destacar por seus méritos intelectuais, culturais e
valorativos, não mede esforços para impedir que outros o façam. O
"homem-massa", nessas condições, atua sob a influência do espírito
de ressentimento, caracterizado pelo ódio figadal contra o indivíduo que
consegue dar vazão aos seus impulsos criativos e, assim, realizar ações
extraordinárias para maior benefício da cultura social. Afinal, nada mais
desagrada ao homem sem qualidades superiores do que ver o triunfo dos
indivíduos ousados capazes de se destacarem socialmente por seus
méritos pessoais. O talento maior fantasma para a mediocridade como enunciado
por Ortega y Gasset, " a
característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a
coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda
parte" (A Rebelião Massas, p. 48). SLOGANS E PUBLICIDADE A massificação do gosto vem atei
também ao estado de degradação da experiência estética da sociedade moderna,
na qual se elaboram tendências "cultuais" padronizadas para
determinados grupos sociais, exigindo simultaneamente pouca
reflexão e grande capacidade de assimilação das tendências projetadas a cada
estação. Como o "homem-massa segue afoitamente
as palavras de ordem de slogans e os mandamentos seculares dos
ícones sociais explorados pela publicidade (instrumento por excelência
do processo massificador da sociedade), sua mente se torna um grotesco
deposito de ideias heteróclitas, perdendo assim qualquer autonomia nas suas
escolhas. Vive-se, por conseguinte, conforme a "moralidade do
impessoal", pois agir de forma destacada da coletividade anônima é algo
ofensivo para o falso pudor da moderna civilização das massas; esta, em vez
de promover o refinamento intelectual e cultural do indivíduo, se esforça acima
de tudo por anular as próprias noções de singularidade e originalidade,
criando blocos humanos desprovidos de personalidade, para que se possa assim
melhor controlá-los. Segundo Ortega y Gasset,
"viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o
que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade
de decisão. Inclusive, quando, desesperados, nos abandonamos à sorte,
decidimos não decidir" (A Rebelião das Massas, p. 73). Podemos dizer que
nobreza é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a
transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. A vida
nobre se contrapõe à vida vulgar e inerte que, estaticamente, se restringe a
si mesma, condenada à imanência perpétua, a não ser que algum fator externo a
obrigue a reagir. Por isso, chamamos massa a esse modo de ser homem - não
tanto por ser multitudinário, mas por ser inerte. A moda é uma grande promotora da
massificação orgânica da sociedade regida pelo sistema de burocratização da
existência, pois ao prometer de forma falaciosa ao consumidor a oportunidade
deste se destacar gloriosamente dos demais ao adquirir determinado gênero,
faz na verdade que tal sujeito siga o sistema aglutinador de massificação.
Se, na Antiguidade grega, um indivíduo obtinha o reconhecimento social pela
realização de feitos extraordinários que superavam o padrão ordinário, em
nossa moderna ordem burocrática da existência conquistamos o reconhecimento
público consumindo os produtos previamente estabelecidos pelos
"sacerdotes" da massificação cultural. Como ninguém quer ficar fora
de moda e assim ser estigmatizado como "extravagante", todo um
grupo social segue passivamente as palavras encantadas dos publicitários, que
promovem uma relação fetichista entre a mercadoria e a felicidade que
supostamente pode vir a ser alcançada mediante o consumo do produto
alardeado. Acreditando se destacar do seio da massa ao usar determinada
coisa, o indivíduo, ludibriado pela propaganda, chafurda ainda mais na essência
da própria massa da qual pretensamente queria se emancipar. A obra de Ortega
y Gasset se revela, conforme vimos no decorrer
deste texto, como um libelo contra a ameaça da supressão da singularidade do
homem ocidental, oprimido continuamente por um ideário valorativo sectário da
redenção da mediocridade diante da demonização da singularidade. A globalização também traz
tendências "culturais" da massificação do gosto e a degradação da
experiência estética das cidades e de toda a sociedade Ensino de MASSA O
"filisteu da cultura" se satisfaz plenamente com o cotidiano da
vida privada pacata e confortável Não é de se estranhar quando um
"filisteu da cultura" que, porventura, venha a conquistar o cargo
de diretor de uma escola diz que o "estudante é um cliente",
discurso muito próximo ao da ideologia comerciaria que dá ao freguês a razão
incondicional sobre todas as coisas, impedindo que o indivíduo saia do estado
de menoridade intelectual e vivencie com responsabilidade as suas escolhas e
decisões existenciais. Tanto pior, o "filisteu da cultura"
infiltrado no sistema educacional interferirá continuamente no planejamento
pedagógico da instituição ao vislumbrar obter o lucro incondicional, pois a
sua relação com a cultura superior é absolutamente artificial, movida apenas
pelo aproveitamento usurário dos bens educacionais. Explorando as capacidades
profissionais dos professores, o diretor-burocrata, alheio ao autêntico
espírito educacional, exigirá de cada docente a máxima dedicação aos seus
afazeres, sem que, todavia, lhes forneça condições adequadas para o exercício
das suas funções pedagógicas. As escolas, em geral, promovem a
legitimação da massificação da cultura, pois os estudantes se encontram na
obrigação imediata de se adequarem intelectualmente aos parâmetros
pedagógicos estabelecidos pelo sistema de ensino, regido por uma lógica
burocrática estranha ao plano imanente da sala de aula; mais ainda, torna-se
praticamente impossível que um estudante seja avaliado singularmente em suas
competências específicas, circunstância que o torna mero número diante da
lógica fria dos fluxogramas acadêmicos. No sistema de ensino massificado, o
estudante é despojado de tudo aquilo que lhe é singular para que possa se
tornar "igual" aos demais, e tal objetivo se realiza não apenas
pelo uso do uniforme escolar, mas acima de tudo pela uniformização do
pensamento. Por conseguinte, a escola regida pelo sistema burocrático e
massificador de valores, em vez de promover a afirmação da criatividade
humana e da cultura, motiva em verdade a barbárie. Por tal motivo a escola
pode ser considerada como uma esfera normativa da sociedade de massa, pois
ela sutilmente "educa" o indivíduo a ser, desde a sua infância, uma
pessoa desprovida de senso crítico para que assim viva sempre ao serviço da
realização plena da ordem estabelecida. Para isso, tal pessoa deve se adequar
à autoridade pedagógica, mantenedora do projeto burocrático da
"sociedade de iguais". A moral de rebanho não se manifesta,
portanto, apenas na esfera religiosa de caráter repressor da ousadia da
singularidade, mas também no âmbito educacional, catequizando os indivíduos
na cartilha da "igualdade". Povo marcado, POVO FELIZ O advento do homem massa
cresce a cada vitória do capitalismo, que se mostra vertiginosamente
eficiente, uma poderosa máquina de esvaziar reflexões e ideias próprias ao
estimular o "ter" em detrimento do "ser", e fazendo
com que pessoas busquem satisfação apenas no material. Esse processo favorece
o mercado da propaganda, já que irreflexivos são mais maleáveis aos estímulos
dos slogans. A necessidade do ter, entretanto, afunda ainda mais na massa os
que seguem uma tendência específica ditada, caso que acontece na moda ou na
necessidade de aquisição de bens do efeito da modernização e que movimentam o
capitalismo. Exposições dessa nova realidade trazida com a
globalização pelo mundo moderno é frequentemente encontrada nas
expressões da Arte. Na Literatura, o escritor inglês Aldous Huxley, em Admirável
mundo novo, descreve uma sociedade em que pessoas vivem
uma harmonia seguindo uma série de regras para qual foram
condicionadas biológica e psicologicamente. Drogas e sexo
são estimulados e o amor reprimido para extirpar qualquer forma de
revolução e estabelecem uma ordem por meio do conformismo. O cantor Zé
Ramalho, numa clara referência ao romance de Huxley, compôs, no final dos
anos 70, em um período de ditadura no Brasil, a música de denúncia social
chamada Admirável Gado Novo, exaltando os mecanismos de
alienação tão presentes na época e que vemos crescer nos dias de hoje. O
ato de despertar da singularidade é considerado prejudicial para a manutenção
da ordem pública Referencias NIETZSCHE,
Friedrich. Consideraciones Intempestivas,
1 - David Strauss, el confesor y el escritor.
Trad. Esp. de Andrés Sanchez Pascual. Madrid: Alianza
Editorial, 2000. ORTEGA
Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. de Marylene
Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2002. |