CLASTRES, Pierre. “O Arco e o
Cesto”. In A Sociedade contra o
Estado. Pesquisas de Antropologia Política. Tradução de Theo Santiago. -
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. Págs. 71-89. O arco e o cesto
Quase sem transição, a noite conquistou a
floresta, e a massa das grandes árvores parece estar mais próxima. Com a
escuridão instala-se também o silêncio; pássaros e macacos calaram-se e só se
escutam as seis notas desesperadas do urutau. E, como por acordo tácito com o
recolhimento geral em que se dispõem os seres e as coisas, nenhum barulho
surge mais desse espaço furtivamente habitado onde acampa um pequeno grupo de
homens. Lá um bando de índios guaiaquis acampa. Animado de quando em quando
por um sopro de vento, o reflexo avermelhado de cinco ou seis fogos
familiares tira da sombra o círculo vago dos abrigos de folha de palmeira,
cada um dos quais, frágil e passageira morada dos nômades, protege o repouso
de uma família. As conversas murmuradas que se seguiram à refeição cessaram
pouco a pouco; as mulheres, abraçando ainda seus filhos encolhidos, dormem.
Poder-se-ia julgar também estarem adormecidos os homens que, sentados junto
ao fogo montam uma guarda muda e rigorosamente imóvel. Entretanto eles não dormem,
e seu olhar pensativo, preso às trevas próximas, mostra uma espera sonhadora.
Pois os homens se preparam para cantar, e essa noite, como por vezes nessa
hora propícia, vão entoar, cada um por si, o canto dos caçadores: sua
meditação prepara o acordo sutil de uma alma e de um instante com as palavras
que vão dizê-lo, uma voz logo se eleva, quase imperceptível a princípio,
brotando do interior, murmúrio prudente que nada traz ainda da busca paciente
de um tom e de um discurso exatos. Mas ela sobe pouco a pouco, o cantor
torna-se seguro de si e, subitamente, seu canto jorra, esplendoroso, livre e
tenso. Estimulada, uma segunda voz se une à primeira, depois uma outra; elas
trazem palavras precoces, como respostas a questões que elas precederiam
sempre. Agora todos os homens cantam. Estão sempre imóveis, o olhar um pouco
mais perdido; cantam todos juntos, mas cada um canta seu próprio canto. Eles
são senhores da noite e cada um pretende ser senhor de si. Mas precipitados, ardentes e graves, as palavras
dos caçadores ache1 se cruzam, à sua revelia, em um
diálogo que elas queriam esquecer. Uma oposição muito clara organiza e domina a vida
quotidiana dos guaiaqui: aquela dos homens e das mulheres cujas atividades
respectivas, marcadas fortemente pela divisão sexual das tarefas, constituem
dois campos nitidamente separados e, como aliás em todos os lugares,
complementares. Mas, diferentemente da maioria das outras sociedades
indígenas, os guaiaqui não conhecem forma de trabalho em que participem ao
mesmo tempo os homens e as mulheres. A agricultura, por exemplo, alterna
tanto atividades masculinas como femininas, já que, se em geral as mulheres
se dedicam a semear, a limpar os campos de cultivo e a colher os legumes e
cereais, são os homens que se encarregam de preparar o lugar das plantações
derrubando as árvores e queimando a vegetação seca. Mas se os papéis são bem
distintos e nunca se misturam, nem por isso deixam de assegurar em comum o
início e o sucesso de uma operação tão importante como a agricultura. Ora,
nada disso ocorre com os guaiaqui. Nômades que tudo ignoram da arte de
plantar, sua economia apoia-se exclusivamente na exploração dos recursos
naturais que a floresta oferece. Estes se distribuem sob duas rubricas
principais: produtos da caça e produtos da coleta, esta última compreendendo
sobretudo o mel, as larvas e o cerne da palmeira pindo. Poderíamos
pensar que a procura dessas duas classes de alimento se conformaria ao modelo
muito difundido na América do Sul segundo o qual os homens caçam, o que é
natural, deixando para as mulheres o cuidado de coletar. Na realidade, as
coisas se passam de maneira muito diferente, uma vez que, entre os guaiaqui,
os homens caçam e coletam. Não que,
mais atentos que outros ao lazer de suas esposas, quisessem dispensá-las das
tarefas que normalmente lhes caberiam; mas, de fato, os produtos da coleta
são obtidos à custa de operações penosas que as mulheres dificilmente
realizariam: localização das colmeias, extração do mel, derrubada das árvores
etc. Trata-se então de um tipo de coleta que concerne bem mais às atividades
masculinas. Ou, em outros termos, a coleta conhecida alhures na América e que
consiste na obtenção de bagas, frutas, raízes, insetos etc., é quase
inexistente entre os guaiaqui, pois na floresta por eles ocupada não são
abundantes os recursos desse gênero. Então, se as mulheres praticamente não
coletam, é porque nela quase nada existe para ser coletado. Consequentemente, como as possibilidades
econômicas dos guaiaqui estão culturalmente reduzidas pela ausência da
agricultura e naturalmente reduzidas pela relativa raridade dos alimentos
vegetais, a tarefa cada dia recomeçada de procurar alimentação para o grupo
incumbe essencialmente aos homens. Isso não significa que as mulheres não
participam na vida material da comunidade. Além de lhes caber a função,
decisiva para os nômades, do transporte dos bens familiares, as esposas dos
caçadores fabricam cestos, potes, cordas para os arcos; elas cozinham, cuidam
das crianças etc. Longe, então, de serem ociosas, elas dedicam inteiramente o
tempo de que dispõem à execução de todos esses trabalhos necessários. Mas não
deixa de ser verdade que no plano fundamental da "produção" de
alimentos, o papel de fato menor desempenhado pelas mulheres deixa aos homens
o absorvente e prestigioso monopólio. Ou, mais precisamente, a diferença
entre homens e mulheres ao nível da vida econômica surge como a oposição de
um grupo de produtores e de um grupo de consumidores. O pensamento guaiaqui, como veremos, exprime
claramente a natureza dessa oposição que, por estar situada na própria raiz
da vida social da tribo, comanda a economia de sua existência quotidiana e
confere sentido a todo um conjunto de atitudes na qual se liga a trama das
relações sociais. O espaço dos caçadores nômades não se pode repartir segundo
as mesmas linhas que o dos agricultores sedentários. Dividido por estes em
espaço da cultura, constituído pela aldeia e pelos campos de cultivo, e em
espaço da natureza ocupado pela floresta circundante, ele se estrutura em
círculos concêntricos. Para os guaiaqui, ao contrário, o espaço é
constantemente homogêneo, reduzido à pura extensão onde é abolida, ao que
parece, a diferença da natureza e da cultura. Mas, na realidade, a oposição
já salientada no plano da vida material fornece igualmente o princípio de uma
dicotomia do espaço que, por ser mais disfarçada do que em sociedades de
outro nível cultural, nem por isso é menos pertinente. Existe entre os
guaiaqui um espaço masculino e um espaço feminino, respectivamente definidos
pela floresta onde os homens caçam e pelo acampamento onde reinam as
mulheres. Sem dúvida as paradas são muito provisórias: elas raramente duram
mais de três dias. Mas são o lugar de repouso onde se consome a alimentação
preparada pelas mulheres, ao passo que a floresta é o lugar do movimento
especialmente destinado às incursões dos homens em busca da caça. Não
poderíamos, evidentemente, tirar desse fato a conclusão de que as mulheres
são menos nômades que seus esposos. Mas, por causa do tipo de economia em que
está apoiada a existência da tribo, os verdadeiros senhores da floresta são
os caçadores: eles efetivamente a cercam, pois são obrigados a explorá-la com
minúcia para explorar sistematicamente todos os seus recursos. Espaço do
perigo, do risco, da aventura sempre renovada para os homens, para as
mulheres, a floresta é, ao contrário, espaço percorrido entre duas etapas,
travessia monótona e fatigante, simples extensão neutra. No polo oposto, o
acampamento oferece ao caçador a tranquilidade do repouso e a ocasião de
fazer trabalhos rotineiros, enquanto é para as mulheres o lugar onde se
realizam suas atividades específicas e se desenrola uma vida familiar que
elas controlam amplamente. A floresta e o acampamento encontram-se assim
dotados de signos contrários conforme se trate de homens ou de mulheres. O
espaço, poder-se-ia dizer, da "banalidade quotidiana" é a floresta
para as mulheres, o acampamento para os homens: para estes, a existência só
se torna autêntica quando a realizam como caçadores, quer dizer, na floresta,
e para as mulheres quando, deixando de ser meios de transporte, elas podem
viver no acampamento como esposas e como mães. Podemos então medir o valor e o alcance da
oposição socioeconômica entre homens e mulheres porque ela estrutura o tempo
e o espaço dos guaiaqui. Ora, eles não deixam no impensado o vivido dessa práxis: têm uma consciência clara e o
desequilíbrio das relações econômicas entre os caçadores e suas esposas se
exprime, no pensamento dos índios, como a oposição
entre o arco e o cesto. Cada um desses dois instrumentos é, com efeito, o
meio, o signo e o resumo de dois "estilos" de existência tanto
opostos como cuidadosamente separados. Quase não é necessário sublinhar que o
arco, arma única dos caçadores, é um instrumento exclusivamente masculino e
que o cesto, coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam, as
mulheres carregam. A pedagogia dos guaiaqui se estabelece principalmente
nessa grande divisão de papéis. Logo aos quatro ou cinco anos, o menino
recebe do pai um pequeno arco adaptado ao seu tamanho; a partir de então ele
começará a se exercitar na arte de lançar com perfeição uma flecha. Alguns anos
mais tarde, oferecem-lhe um arco muito maior, flechas já eficazes, e os
pássaros que ele traz para sua mãe são a prova de que ele é um rapaz sério e
a promessa de que será um bom caçador. Passam-se ainda alguns anos e vem a
época da iniciação; o lábio inferior do jovem de cerca de 15 anos é
perfurado; ele tem o direito de usar o ornamento labial, o beta, e é então considerado um
verdadeiro caçador, um kybuchuété. Isso
significa que um pouco mais tarde ele poderá ter uma mulher e deverá
consequentemente prover as necessidades do novo lar. Por isso, o seu primeiro
cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para si um
arco; de agora em diante membro "produtor" do bando, ele caçará com
uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte ou a velhice o
separarão de seu arco. Complementar e paralelo é o destino da mulher. Menina
de nove ou dez anos, recebe de sua mãe uma miniatura de cesto, cuja confecção
ela acompanha atentamente. Ele nada transporta, sem dúvida; mas o gesto
gratuito de sua marcha — cabeça baixa e pescoço estendido nessa antecipação
do seu esforço futuro — a prepara para seu futuro próximo. Pois o
aparecimento, por volta dos 12 ou 13 anos, da primeira menstruação e o ritual
que sanciona a chegada da sua feminilidade fazem da jovem virgem uma daré, uma mulher que será logo esposa de um caçador.
Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condição definitiva, ela
fabrica então o seu próprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem,
tanto senhores como prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco,
ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu arco
e suas flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto de
uma mulher: pois, como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver a elas. Os guaiaqui apreendem essa grande oposição,
segundo a qual funciona sua sociedade, por meio de um sistema de proibições
recíprocas: uma proíbe as mulheres de tocarem o arco dos caçadores; outra
impede os homens de manipularem o cesto. De um modo geral, os utensílios e
instrumentos são sexualmente neutros, se se pode dizer: o homem e a mulher
podem utilizá-los indiferentemente; só o arco e o cesto escapam a essa
neutralidade. Esse tabu sobre o contato físico com as insígnias mais
evidentes do sexo oposto permite evitar assim toda transgressão da ordem
sociossexual que regulamenta a vida do grupo. Ele é escrupulosamente
respeitado e nunca se assiste à estranha conjunção de uma mulher e um arco
nem àquela, mais que ridícula, de um caçador e um cesto. Os sentimentos. que
cada sexo experimenta com relação ao objeto privilegiado do outro são muito
diferentes: um caçador não suportaria a vergonha de transportar um cesto, ao
passo que sua esposa temeria tocar seu arco. É que o contato da mulher e do
arco é muito mais grave que o do homem e do cesto. Se uma mulher pensasse em
pegar um arco, ela atrairia, certamente, sobre seu proprietário o pané, quer dizer, o azar na caça, o
que seria desastroso para a economia dos guaiaqui. Quanto ao caçador, o que
ele vê e recusa no cesto é precisamente a possível ameaça do que ele teme
acima de tudo, o pané. Pois,
quando um homem é vítima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de
preencher sua função de caçador, perde por isso mesmo a sua própria natureza
e a sua substância lhe escapa: obrigado a abandonar um arco doravante inútil,
não lhe resta senão renunciar à sua masculinidade e, trágico e resignado,
encarrega-se de um cesto. A dura lei dos guaiaqui não lhe deixa alternativa.
Os homens só existem como caçadores, e eles mantêm a certeza da sua maneira
de ser preservado o seu arco do contato da mulher. Inversamente, se um
indivíduo não consegue mais realizar-se como caçador, ele deixa ao mesmo
tempo de ser um homem: passando do arco para o cesto, metaforicamente ele se torna uma mulher. Com efeito, a
conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transformar-se na sua
inversa e complementar: aquela da mulher e do cesto. Ora, a lógica desse sistema fechado, constituído
de quatro termos grupados em dois pares opostos, ficou provada: havia entre
os guaiaqui dois homens que carregavam cestos: Um, Chachubutawachugi, era panema.
Não possuía arco e a única caça à qual podia entregar-se de vez em quando
era a captura a mão de tatus e quatis: tipo de caça que, embora correntemente
praticada por todos os guaiaqui, está bem longe de apresentar a seus olhos a
mesma dignidade que a caça com arco, o jyvondy. Por
outro lado, Chachubutawachugi era viúvo; e, como era panema, nenhuma mulher queria saber dele, mesmo que a título de
marido secundário. Ele tampouco procurava integrar-se à família de um de seus
parentes: estes teriam julgado indesejável a presença permanente de um homem
que agravasse sua incompetência técnica com um excelente apetite. Sem esposa
porque sem arco, só lhe restava aceitar sua triste sorte. Nunca acompanhava
os outros homens em suas expedições de caça, mas partia, só ou em companhia
das mulheres, em busca de larvas, mel ou dos frutos que ele havia antes
localizado. E, para poder transportar o produto de sua coleta, munia-se de um
cesto que uma mulher lhe havia dado de presente. Como o azar na caça lhe
obstruía o acesso às mulheres, ele perdia, ao menos parcialmente, sua
qualidade de homem e se achava assim rejeitado no campo simbólico do cesto. O segundo caso é um pouco diferente. Krembégi era na verdade um sodomita. Ele
vivia como as mulheres e, à semelhança delas, mantinha em geral os cabelos
nitidamente mais longos que os outros homens, e só executava trabalhos
femininos: ele sabia "tecer" e fabricava, com os dentes de animais
que os caçadores lhe ofereciam, colares que demonstravam um gosto e
disposições artísticos muito melhor expressos do que nas obras das mulheres.
Enfim, ele era evidentemente proprietário de um cesto. Em suma, Krembégi atestava assim no seio da
cultura guaiaqui a existência inesperada de um refinamento habitualmente
reservado a sociedades menos rústicas. Esse pederasta incompreensível vivia
como uma mulher e havia adotado as atitudes e comportamentos próprios desse
sexo. Ele recusava por exemplo tão seguramente o contato de um arco como um
caçador o do cesto; ele considerava que seu lugar natural era o mundo das
mulheres. Krembégi era homossexual porque era panema. Talvez também seu azar na caça
proviesse de ser ele, anteriormente, um invertido inconsciente. Em todo o caso,
as confidências de seus companheiros revelavam que a sua homossexualidade se
tornara oficial, quer dizer, socialmente reconhecida, quando ficara evidente
a sua incapacidade em se servir de um arco: para os próprios guaiaqui ele era
um kyrypy-meno (ânus-fazer amor) porque era panema. Os ache mantinham aliás uma
atitude muito diferente com relação a cada um dos dois carregadores de cesto
que acabamos de evocar. O primeiro, Chachubutawachugi, era objeto de caçoada geral,
se bem que desprovida de verdadeira maldade: os homens o desprezavam bastante
nitidamente, as mulheres dele riam à socapa, e as crianças tinham por ele um
respeito muito menor do que pelos outros adultos. Krembégi ao contrário não despertava
nenhuma atenção especial; consideravam-se evidentes e adquiridas a sua
incapacidade como caçador e a sua homossexualidade. De tempos em tempos,
certos caçadores faziam dele seu parceiro sexual, manifestando nesses jogos
eróticos mais libertinagem — ao que parece — do que perversão. Mas não
ocorreu nunca por parte deles qualquer sentimento de desprezo para com ele.
Inversamente e se conformando nisso à imagem que deles fazia sua própria
sociedade, esses dois guaiaqui se mostravam desigualmente adaptados ao seu
respectivo estatuto. Krembégi estava tão à vontade, tranquilo
e sereno em seu papel de homem tornado mulher, quanto Chachubutawachugi parecia inquieto, nervoso e
frequentemente descontente. Como se explica essa diferença introduzida pelos ache no tratamento reservado a dois
indivíduos que, ao menos no plano formal, eram negativamente idênticos? É que, ocupando ambos uma mesma posição
em relação aos outros homens, uma vez que os dois eram panema, seu estatuto positivo deixaria de ser equivalente, pois
um deles, Chachubutawachugi, embora obrigado a renunciar parcialmente
às determinações masculinas, permanecera um homem, enquanto o outro, Krembégi, assumira até as últimas
consequências sua condição
de homem não-caçador, "tornando-se" uma mulher. Ou, em
outros termos, Krembégi
havia encontrado, por meio de sua homossexualidade, os topos ao qual o destinava logicamente sua
incapacidade de ocupar o espaço dos homens; o outro, em compensação,
recusando o movimento dessa mesma lógica, estava eliminado do círculo dos
homens sem, entretanto, com isso integrar-se ao das mulheres. O que significa
dizer que, literalmente, ele não estava
em lugar algum, e que sua situação era muito mais incômoda que a de Krembégi. Este último ocupava aos olhos
dos ache um lugar definido, embora
paradoxal; e desprovida, em certo sentido, de toda ambiguidade, sua posição
no grupo resultava normal, mesmo que essa nova norma fosse a das mulheres. Chachubutawachugi, ao contrário, constituía por
si mesmo uma espécie de escândalo lógico; não se situando em nenhum lugar
nitidamente identificável, ele escapava do sistema e introduzia nele um fator
de desordem: o anormal, sob certo ponto de vista, não era o outro, mas ele.
Daí sem dúvida a agressividade secreta dos guaiaqui com relação a ele, que se
manifestava por vezes nas caçoadas. Daí também provavelmente as dificuldades
psicológicas que ele experimentava e um sentimento agudo de abandono: tão
difícil é manter a conjunção de um homem e de um cesto. Chachubutawachugi queria pateticamente permanecer
um homem sem ser um caçador: ele se expunha assim ao ridículo e, portanto, às
caçoadas, pois era o ponto de contato entre duas regiões normalmente
separadas. Pode-se supor que esses dois homens mantivessem
ao nível de seu cesto a diferença das relações que tinham com sua
masculinidade. De fato, Krembégi carregava seu cesto como as mulheres, isto é,
com a tira do suporte sobre a testa. Quanto
a Chachubutawachugi, colocava a tira sobre o peito e nunca sobre a testa.
Era claramente uma maneira inconfortável, e muito mais fatigante do que a
outra, de transportar a cesta; mas era também para ele o único meio de
mostrar que, mesmo sem arco, continuava sendo um homem. Central por sua posição e potente em seus
efeitos, a grande oposição dos homens e das mulheres impõe então sua marca a
todos os aspectos da vida dos guaiaqui. Também é ela que funda a diferença entre o canto dos
homens e o das mulheres. O prerã masculino e
o chengaruvara feminino se
opõem totalmente por seu estilo e por seu conteúdo; eles exprimem dois modos
de existência, duas presenças no mundo, dois sistemas de valores bem
diferentes uns dos outros. Dificilmente aliás pode-se falar de canto a
propósito das mulheres; trata-se em realidade de uma "saudação
chorosa" generalizada; mesmo quando não saúdam ritualmente um
estrangeiro ou um parente há muito tempo ausente, as mulheres
"cantam" chorando. Num tom queixoso, mas com uma voz forte,
agachadas e com o rosto escondido nas mãos, elas pontuam cada frase de sua
melopeia com soluços estridentes. Frequentemente as mulheres cantam todas
juntas e o alarido de seus gemidos conjugados exerce
sobre o ouvinte desprevenido uma impressão de mal-estar. Ficamos tanto mais
surpresos ao ver, depois de tudo terminado, o rosto tranquilo das chorosas e
olhos perfeitamente secos. Convém por outro lado frisar que o canto das
mulheres intervém sempre em circunstâncias rituais: seja durante as
principais cerimônias da sociedade guaiaqui, seja no decorrer das múltiplas
ocasiões propiciadas pela vida quotidiana. Por exemplo, quando um caçador
traz para o acampamento algum animal, uma mulher o "saúda"
chorando, pois ele evoca um determinado parente desaparecido; ou, ainda,
quando uma criança se fere brincando, sua mãe logo entoa uma chengaruvara de modo
exatamente semelhante a todas as outras. O canto das mulheres, ao contrário
do que se poderia esperar, jamais é alegre. Os temas são sempre a morte, a
doença, a violência dos brancos; as mulheres assumem assim na tristeza de seu
canto toda a infelicidade e toda a angústia dos ache. O contraste que ele forma com o canto dos homens
é sensível. Parece haver entre os guaiaqui como que uma divisão sexual do
trabalho linguístico segundo a qual todos os aspectos negativos da existência
são assumidos pelas mulheres, ao passo que os homens se dedicam sobretudo a
celebrar se não os seus prazeres, pelo menos os valores que a tornam
suportável. Enquanto nos seus próprios gestos a mulher se esconde e parece
humilhar-se para cantar ou antes para chorar, o caçador, ao contrário, cabeça
erguida e corpo ereto, se exalta no seu canto. A voz é poderosa, quase
brutal, simulando às vezes irritação. Na extrema virilidade que o caçador
investe em seu canto se afirmam uma total certeza de si, um acordo consigo
mesmo que nada pode desmentir. A linguagem do canto masculino é aliás
extremamente deformada. Na medida em que sua improvisação se torna mais fácil
e mais rica e em que as palavras jorram por si mesmas, o caçador lhes impõe
uma transformação tal que, logo, se acreditaria escutar uma outra língua: para
um não-aché, esses cantos são rigorosamente
incompreensíveis. Quanto à sua temática, ela consiste essencialmente numa
louvação enfática que o caçador endereça a si mesmo. O conteúdo do discurso é
com efeito estritamente pessoal e tudo se diz na primeira pessoa. O homem
fala quase que exclusivamente sobre suas aventuras de caçador, sobre os
animais que encontrou, as feridas que recebeu, sua habilidade em manejar a
flecha. Leitmotiv indefinidamente
repetido, ouve-se proclamar de modo quase obsessivo: cho rõ bretete, cho rõ jyvondy, cho
rõ yma wachu, yma chija: "Eu
sou um grande caçador, eu costumo matar com minhas flechas, eu sou uma
natureza poderosa, uma natureza irritada e agressiva!" E frequentemente,
como para marcar melhor a que ponto sua glória é indiscutível, ele pontua a
frase prolongando-a com um vigoroso Cho, cho, cho: "Eu, eu, eu."2 A diferença dos cantos traduz admiravelmente a
oposição dos sexos. O canto das mulheres é uma lamentação mais frequentemente
coral, ouvida apenas durante o dia; o dos homens ocorre quase sempre durante
a noite, e, se suas vozes por vezes simultâneas podem dar a impressão de um
coro, é uma falsa aparência, já que cada caçador é de fato um solista. Além
disso, o chengaruvara feminino
parece consistir em fórmulas mecanicamente repetidas, adaptadas às diversas
circunstâncias rituais. Ao contrário, o prera dos
caçadores só depende do seu humor e só se organiza em função da sua
individualidade; é uma pura improvisação pessoal que autoriza, por outro
lado, a procura de efeitos artísticos no jogo da voz. Essa determinação
coletiva do canto das mulheres, individual do canto dos homens, nos remete
assim à oposição da qual partimos: único elemento realmente
"produtivo" da sociedade guaiaqui, o caçador tem no plano da
linguagem uma liberdade de criação que a situação de "grupo
consumidor" proíbe às mulheres. Ora, essa liberdade que os homens vivem e dizem
enquanto caçadores não se refere somente à natureza da relação que como
grupos os liga às mulheres e delas os separa. Pois, através do canto dos
homens, se descobre, secreta, uma outra oposição, não menos potente que a
primeira, mas inconsciente: aquela dos
caçadores entre eles. E para melhor escutar seu canto e compreender o que
realmente se diz, nos é necessário voltar ainda à etnologia dos guaiaqui e às
dimensões fundamentais da sua cultura. Existe para o caçador ache um tabu alimentar que
formalmente o proíbe de consumir a carne de suas próprias presas: bai jyvombré ja uéméré: "Os
animais que matamos não devem ser comidos por nós mesmos". De modo que,
quando um homem chega ao acampamento, divide o produto de sua caça entre sua
família (mulher e filhos) e os outros membros do bando; naturalmente, ele não
provará a carne preparada por sua esposa. Ora, como vimos, a caça ocupa o
lugar mais importante na alimentação guaiaqui. Disso resulta que cada homem
passa sua vida caçando para os outros e recebendo deles sua própria
alimentação. Essa proibição é estritamente respeitada mesmo pelos rapazes
não-iniciados, quando matam pássaros. Uma de suas consequências mais
importantes é que ela impede ipso facto
a dispersão dos índios em famílias elementares: o homem morreria de fome,
a menos que renunciasse ao tabu. É preciso, portanto, se deslocar em grupo.
Os guaiaqui, para explicar essa atitude, afirmam que comer os animais
abatidos por eles próprios é a forma mais segura de atrair o pané. Esse temor maior dos caçadores
basta para impor o respeito da proibição que ela funda: se se deseja
continuar a matar animais, é necessário não os comeres. A teoria indígena
apoia-se simplesmente na ideia de que a conjunção entre o caçador e os
animais mortos, no plano do consumo, implicaria uma disjunção entre o caçador
e os animais vivos, no plano da "produção". Ela tem, portanto, um
alcance explícito sobretudo negativo, uma vez que se resume na interdição dessa conjunção. Na realidade, essa proibição alimentar possui
também um valor positivo, já que opera como um princípio estruturante que
funda como tal a sociedade guaiaqui. Estabelecendo uma relação negativa entre
cada caçador e o produto de sua caça, ela coloca todos os homens na mesma posição, uns com relação aos outros, e a
reciprocidade do dom de alimentação se mostra a partir daí não apenas
possível, mas necessária: todo caçador é ao mesmo tempo doador e recebedor de
carne. O tabu sobre a caça aparece então como o ato fundador da troca de
alimentação entre os guaiaqui, isto é, como um fundamento da sua própria
sociedade. Outras tribos conhecem sem dúvida esse mesmo tabu. Mas ele se
reveste, entre os ache, de uma importância particularmente grande pelo fato
de que remete justamente à sua fonte principal de alimentação. Obrigando o
indivíduo a se separar de sua caça, ele o obriga a confiar nos outros,
permitindo assim que o laço social se ligue de maneira definitiva; a
interdependência dos caçadores garante a solidez e a permanência desse laço e a
sociedade ganha em força o que os indivíduos perdem em autonomia. A disjunção
do caçador e de sua caça funda a conjunção dos caçadores entre si, isto é, o
contrato que rege a sociedade guaiaqui. E mais, a disjunção no plano do consumo
entre caçadores e animais mortos assegura, protegendo aqueles do pané, a repetição futura da conjunção
entre caçadores e animais vivos, ou seja, o sucesso da caça e, portanto, a
sobrevivência da sociedade. Rejeitando do lado da Natureza o contato direto
entre o caçador e sua própria caça, o tabu alimentar se situa no coração
mesmo da cultura: entre o caçador e seu alimento, ele impõe a mediação dos
outros caçadores. Vemos assim a troca da caça, que circunscreve em grande
parte nos guaiaqui o plano da vida econômica, transformar, por seu caráter
obrigatório, cada caçador individual em uma relação. Entre o caçador e seu "produto" abre-se o
espaço perigoso da proibição e da transgressão; o medo do pané funda a troca, privando o
caçador de todo direito sobre sua caça: esse direito só se exerce sobre a dos
outros. Ora, é impressionante constatar que essa mesma estrutura relacionai,
pela qual se definem rigorosamente os homens no nível da circulação dos bens
se repete no plano das instituições matrimoniais. Desde o começo do século XVII, os primeiros
missionários jesuítas tentaram em vão entrar em contato com os guaiaqui.
Puderam, entretanto, recolher numerosas informações sobre essa misteriosa
tribo e aprenderam, muito surpresos, que ao contrário do que se passava entre
os outros selvagens existia entre os guaiaqui um excesso de homens em relação
ao número de mulheres. Eles não estavam enganados, pois, quase 400 anos
depois, pudemos observar o mesmo desequilíbrio do sex ratio: em
um dos dois grupos meridionais, por exemplo, existia exatamente uma mulher
para dois homens. Não é necessário estudar aqui as causas dessa anomalia,3 mas é importante examinar suas
consequências. Qualquer que seja o tipo de casamento preferido por uma
sociedade, há quase sempre um número mais ou menos equivalente de esposas e
de maridos potenciais. A sociedade guaiaqui podia escolher entre várias soluções
para igualar esses dois números. Uma vez que era impossível a
solução-suicida, que consistia em renunciar à proibição do incesto, ela
poderia inicialmente admitir o assassinato dos recém-nascidos de sexo
masculino. Mas toda criança macho é um futuro
caçador, isto é, um membro essencial da comunidade: teria sido então
contraditório desembaraçar-se dela. Podia-se também aceitar a existência de
um número relativamente importante de celibatários; mas essa escolha era
ainda mais arriscada que a precedente, pois, em sociedades tão reduzidas
demograficamente, não existe nada mais perigoso para o equilíbrio do grupo
que um celibatário. Ao invés de diminuir artificialmente o número de esposos
possíveis, não restava senão aumentar, para cada mulher, o número de maridos
reais, isto é, instituir um sistema de casamento poliandrico. E de fato todo excedente de
homens é absorvido pelas mulheres sob a forma de maridos secundários, de jepetyva, que ocuparão ao lado da esposa
comum um lugar quase tão invejável como o do imété ou marido
principal. A sociedade guaiaqui soube, portanto, se
preservar de um perigo mortal, adaptando a família conjugal a essa demografia
completamente desequilibrada. O que resulta disso, do ponto de vista dos
homens? Praticamente, nenhum deles pode conjugar, se se pode dizer, sua
mulher no singular, uma vez que não é o único marido e que a divide com um e
às vezes até dois outros homens. Poderíamos pensar que, por ser a norma da
cultura na e pela qual se determinam, os homens não são afetados por essa
situação e não reagem, diante dela de maneira especialmente forte. Na
realidade, a relação entre a cultura e os indivíduos que nela vivem não é
mecânica, e os maridos guaiaquis, mesmo aceitando a única solução possível ao
problema que lhes foi apresentado, não ficam conformados diante dele. Os
lares poliandricos têm sem dúvida uma existência tranquila e os três termos
do triângulo conjugai vivem em bom entendimento. Isso não impede que, quase
sempre, os homens tenham em segredo — pois entre eles nunca falam sobre isso
— sentimentos de irritação, por vezes de agressividade com relação ao
coproprietário de sua esposa. Durante nossa estada entre os guaiaqui, uma
mulher casada teve um caso amoroso com um jovem solteiro. Furioso, o marido
inicialmente bateu no rival; depois, diante da insistência e da chantagem de
sua mulher, acabou concordando em legalizar a situação, deixando o amante
clandestino se tornar o marido secundário oficial de sua esposa. Aliás, ele
não tinha escolha; se recusasse esse arranjo, sua mulher talvez o tivesse
abandonado, condenando-o assim ao celibato, pois não existia na tribo nenhuma
outra mulher disponível. Por outro lado, a pressão do grupo, cioso de
eliminar todo fator de desordem, cedo ou tarde o teria obrigado a se
conformar a uma instituição precisamente destinada a resolver esse tipo de
problema. Ele resignou-se então a dividir sua mulher com outro, embora a
contragosto. Mais ou menos na mesma época morreu o esposo secundário de uma
outra mulher. As relações deste com o marido principal tinham sempre sido
boas: se não eram marcadas por uma extrema cordialidade, eram pelo menos
extremamente polidas. Mas o imété sobrevivente
não demonstrou, no entanto, uma tristeza excessiva ao ver desaparecer o japetyva. Ele não dissimulou sua
satisfação: "Eu estou contente", diz ele
"agora sou o único marido de minha mulher". Os exemplos poderiam multiplicar-se. Os dois
casos que acabamos de evocar bastam entretanto para
mostrar que, muito embora os homens guaiaquis aceitem a poliandria, estão
longe de se sentir à vontade. Existe uma espécie de "defasagem"
entre essa instituição matrimonial que protege — eficazmente — a integridade
do grupo4 e os indivíduos que ela
envolve. Os homens aprovam a poliandria porque ela é necessária em virtude do
déficit de mulheres, mas suportam-na como uma obrigação muito desagradável.
Numerosos maridos guaiaquis têm de dividir sua mulher com um outro homem, e
quanto àqueles que exercem sozinhos seus direitos conjugais, arriscam-se a
ver a qualquer momento esse monopólio raro e frágil suprimido pela
concorrência de um celibatário ou de um viúvo. As esposas guaiaquis têm por conseguinte um papel mediador entre os doadores e
os tomadores de mulheres, e também entre
os próprios tomadores. A troca pela qual um homem dá a outro sua filha ou
irmã não faz com que termine aí — com licença da expressão — a circulação
dessa mulher: o recebedor dessa "mensagem" deverá num prazo mais ou
menos longo dividir a "leitura" com um outro homem. A troca das
mulheres é em si mesma criadora de aliança entre famílias; mas a poliandria,
sob sua forma guaiaqui, acaba de sobrepor-se à troca das mulheres para
preencher uma função bem determinada: ela permite preservar como cultura a
vida social a que chega o grupo mediante a troca das mulheres. No limite, o
casamento entre os guaiaqui só pode ser poliandrico, uma vez que apenas sob
essa forma ele adquire o valor e o alcance de uma instituição que cria e
mantém a cada instante a sociedade como tal. Se os guaiaqui rejeitassem a
poliandria, sua sociedade não sobreviveria; não podendo, por causa de sua
fraqueza numérica, obter mulheres atacando outras tribos, eles se veriam
colocados diante da perspectiva de uma guerra civil entre solteiros e
possuidores de mulheres, isto é, diante de um suicídio coletivo da tribo. A
poliandria elimina assim a oposição suscitada entre os desejos dos homens
pela raridade dos bens que são as mulheres. É então uma espécie de razão de Estado que faz
com que os maridos guaiaquis aceitem a poliandria. Cada um deles renuncia ao
uso exclusivo de sua esposa em proveito de um solteiro qualquer da tribo, a
fim de que esta possa subsistir como unidade social. Alienando a metade de
seus direitos matrimoniais, os maridos ache tornam
possíveis a vida em comum e a sobrevivência da sociedade. Mas isso não
impede, como as narrativas acima evocadas o mostram, sentimentos latentes de
frustração e descontentamento: aceita-se no final das contas partilhar sua
mulher com outro homem porque não há outro jeito, mas com um evidente mau
humor. Todo homem guaiaqui é, potencialmente, um tomador e um doador de
esposa, pois, muito antes de compensar a mulher que ele terá recebido pela
filha que ela lhe dará, ele deverá oferecer a outro homem sua própria esposa
sem que se estabeleça uma reciprocidade impossível: antes de dar a filha, é
preciso dar também a mãe. Isso significa que, entre os guaiaquis, um homem só
é um marido se aceitar sê-lo pela metade, e a superioridade do marido
principal sobre o marido secundário em nada modifica o fato de que o primeiro
deve levar em conta os direitos do segundo. Não é entre cunhados que as
relações pessoais são as mais marcadas, mas entre os maridos de uma mesma
mulher, e, o mais das vezes, como vimos, de maneira negativa. Pode-se descobrir agora uma analogia de
estrutura entre a relação do caçador com sua caça e a do marido com sua
esposa? Constata-se inicialmente que, em relação ao homem como caçador e como
esposo, os animais e as mulheres ocupam um lugar equivalente. Em um caso, o
homem se vê radicalmente separado do produto de sua caça, uma vez que não
deve consumi-la; no outro, ele não é nunca completamente marido, mas, na
melhor das hipóteses, um semimarido: entre um homem
e sua mulher vem interpor-se o terceiro termo: o marido secundário. Assim
como um homem, para se alimentar, depende da caça realizada pelos outros, assim um marido,
para "consumir" sua esposa,5 depende do outro esposo, cujos
desejos, sob pena de tornar a coexistência impossível, deve também respeitar.
O sistema poliandrico limita, pois, duplamente os direitos matrimoniais de
cada marido: ao nível dos homens que, com licença da expressão, se neutralizam
uns aos outros, e ao nível da mulher que, sabendo muito bem tirar partido
dessa situação, não deixa de dividir seus maridos para melhor reinar sobre
eles. Consequentemente, de um ponto de vista formal, a
caça é para o caçador o que a mulher é para o marido, pelo fato de que uma e
outra mantêm com o homem uma relação apenas mediatizada para cada caçador
guaiaqui, a relação com o alimento animal e com as mulheres passa pelos
outros homens. As circunstâncias muito particulares de sua vida obrigam os
guaiaqui a dotarem a troca e a reciprocidade de um coeficiente de rigor muito
mais forte que em outros lugares, e as exigências dessa hiper troca são
bastante esmagadoras para surgir na consciência dos índios e suscitar às
vezes conflitos ocasionados pela necessidade da poliandria. É preciso com
efeito frisar que, para os índios, a
obrigação de dar a caça não é absolutamente vivida como tal, ao passo que a
de dividir esposa é experimentada como alienação. Mas, é essa identidade formal da dupla relação caçador-caça, marido-esposa
que devemos reter aqui. O tabu alimentar e o déficit de mulheres exercem,
cada um em seu plano próprio, funções paralelas: garantir a existência da
sociedade pela interdependência dos caçadores, assegurar sua permanência pela
divisão de mulheres. Positivas por criarem e recriarem a cada instante a
própria estrutura social, essas funções se duplicam também de uma dimensão
negativa por introduzirem, entre o homem por um lado e, por outro, sua caça e
sua mulher, toda a distância que virá precisamente habitar o social. Aqui se
determina a relação estrutural do homem com a essência do grupo, isto é, com
a troca. Com efeito, a doação da caça e a partilha das esposas remete
respectivamente a dois dos três suportes fundamentais sobre os quais repousa
o edifício da cultura: a troca dos bens e a troca das mulheres. Essa relação dupla e idêntica dos homens com a
sua sociedade, mesmo que nunca surja em sua consciência, não é, entretanto,
inerte. Ao contrário, mais ativa ainda por subsistir inconsciente, é ela que
define a relação singular dos caçadores com a terceira ordem de realidade na
qual e pela qual a sociedade existe: a linguagem como troca de mensagens.
Pois, em seu canto, os homens exprimem ao mesmo tempo o saber impensado de
seu destino de caçadores e esposos e o protesto contra esse destino. Assim se
ordena a figura completa da tripla ligação dos homens com a troca: o caçador
individual nela ocupa o centro, ao passo que o simbolismo dos bens, das
mulheres e das palavras traça a sua periferia. Mas enquanto a relação do
homem com a caça e com as mulheres consiste em uma disjunção que funda a
sociedade, sua relação com a linguagem se condensa no canto em uma conjunção
bastante radical para negar justamente a função de comunicação da linguagem
e, ainda mais, a própria troca. Consequentemente, o canto dos caçadores ocupa
uma posição simétrica e inversa à do tabu alimentar e da poliandria, dos
quais ele marca, por sua forma e por seu conteúdo, que os homens querem
negá-los como caçadores e como maridos. Lembramo-nos com efeito de que o conteúdo dos
cantos masculinos é eminentemente pessoal, sempre articulado à primeira
pessoa e estritamente consagrado ao louvor do cantor enquanto bom caçador.
Por que é assim? O canto dos homens, se é seguramente linguagem, já não é
mais, entretanto a linguagem corrente da vida quotidiana, o que permite a
troca dos grupos linguísticos. Ele é mesmo o oposto. Se falar é emitir uma
mensagem destinada a um recebedor, então o canto dos homens ache se situa
fora da linguagem. Pois quem escuta o canto de um caçador, além do próprio
cantor, e a quem se destina a mensagem senão àquele mesmo que a emite? Ele
mesmo objeto e sujeito de seu canto, o caçador dedica apenas a si mesmo o
recitativo lírico. Prisioneiro de uma troca que os determina apenas como
elementos de um sistema, os guaiaqui aspiram a se libertar de suas
exigências, mas sem poderem recusá-lo no próprio plano em que o realizam e o
sofrem. Como, a partir de então, separar os termos sem quebrar as relações?
Só se oferecia o recurso à linguagem. Os caçadores guaiaquis encontraram em
seu canto o truque inocente e profundo que lhes permite recusar no plano da
linguagem a troca que eles não podem abolir naquele dos bens e das mulheres. Não é certamente em vão que os homens escolhem
para hino de sua liberdade o solo noturno
de seu canto. Apenas ali pode articular-se uma experiência sem a qual eles
talvez não pudessem suportar a tensão permanente que as necessidades da vida
social impõem à sua vida quotidiana. O canto do caçador, essa endo linguagem,
é assim para ele o momento de seu verdadeiro repouso no qual se vem abrigar a
liberdade de sua solidão. Eis por que, caída a noite, cada homem toma posse
do prestigioso reino, reservado exclusivamente a ele, onde pode enfim,
reconciliado consigo mesmo, sonhar nas palavras o impossível "tête-à-tête com sua própria
pessoa". Mas os cantores ache,
poetas nus e selvagens que dão à sua linguagem uma nova santidade, não sabem
que o fato de todos dominarem uma igual magia das palavras — não são seus
cantos simultâneos a mesma canção emocionante e ingênua de seu próprio gesto?
— dissipa então para cada um a esperança de conseguir sua diferença. Aliás, o
que lhes importa? Eles cantam, segundo dizem, ury vwa, "para ficarem
contentes". E se repetem assim, ao longo das horas, estes desafios cem
vezes declamados: "Eu sou um grande caçador, eu mato muito com minhas
flechas, eu sou uma natureza forte." Mas eles são lançados para não
serem notados, e, se seu canto dá ao caçador o orgulho de uma vitória, é
porque ele quer o esquecimento de todo combate. Precisemos que não é nossa
intenção sugerir aqui nenhuma biologia da cultura; a vida social não é a vida
e a troca não é uma luta. A observação de uma sociedade primitiva mostra-nos
o contrário; se a troca como essência do social pode assumir a forma
dramática de uma competição entre aqueles que trocam, esta está condenada a
permanecer estática, pois a permanência do "contrato social" exige
que não haja nem vencedor nem vencido e que os ganhos e as perdas se
equilibrem constantemente para cada um. Poder-se-ia dizer, em resumo, que a
vida social é um "combate" que exclui toda vitória e que,
inversamente, quando se pode falar de "vitória", é que se está fora
de todo combate, isto é, fora da vida social. Finalmente, o que os cantos dos
índios guaiaquis nos lembram é que não se pode ganhar em todos os planos, que
não se pode deixar de respeitar as regras do jogo social, e que a fascinação
de não participar dele conduz a uma grande ilusão. Por sua natureza e função, esses cantos ilustram
de modo exemplar a relação geral do homem com a linguagem, tema sobre o qual
essas vozes longínquas nos convidam a meditar. Elas nos convidam a tomar um
caminho já quase apagado, e o pensamento dos selvagens, por repousar numa
linguagem ainda primeira, se dirige somente ao pensamento. Vimos na verdade
que, além do contentamento, o canto proporciona aos caçadores — e sem que
eles saibam — o meio de escapar à vida social recusando a troca que a funda.
O mesmo movimento pelo qual ele se separa do homem social que é leva o caçador a se saber e a se dizer enquanto individualidade concreta absolutamente
fechada sobre si. O mesmo homem existe, portanto, como pura relação no plano da troca de bens e de
mulheres e como manada, se se pode
dizer, no plano da linguagem. É pelo canto que ele chega à consciência de si
mesmo como Eu e ao uso desde então
legítimo desse pronome pessoal. O homem existe para si em e por seu canto,
ele mesmo é o seu próprio canto: eu canto, logo existo. Ora, é evidente que
se a linguagem, sob a forma do canto, se designa ao homem como o lugar
verdadeiro de seu ser, não se trata mais da linguagem como arquétipo da
troca, uma vez que é precisamente disso que se quer liberar. Em outros
termos, o próprio modelo do universo da comunicação é também o meio de
escapar dele. Uma palavra pode ser ao mesmo tempo uma mensagem trocada e a
negação de toda mensagem, ela pode se pronunciar como signo e como o
contrário de um signo. O canto dos guaiaqui nos remete então a uma natureza
dupla e essencial da linguagem que se manifesta ora em sua função aberta de
comunicação, ora em sua função fechada de constituição de um Ego: essa
capacidade da linguagem de exercer funções inversas repousa sobre a
possibilidade de seu desdobramento em signo
e valor. Longe de ser inocente como uma distração ou uma
simples recreação, o canto dos caçadores guaiaquis mostra a vigorosa intenção
que o anima a escapar da sujeição do homem à rede geral dos signos (da qual
as palavras são aqui apenas a metáfora privilegiada) por uma agressão contra
a linguagem sob a forma de uma transgressão de sua função. O que se torna uma
palavra quando cessamos de utilizá-la como um meio de comunicação, quando ela
é desviada de seu fim "natural", que é a relação com o Outro? Separadas
de sua natureza de signos, as palavras não se destinam a nenhuma escuta, são
elas mesmas seu próprio fim, e, para quem as pronúncias, se convertem em
valores. Por outro lado, transformando-se de sistema de signos móveis entre
emissores e receptores em pura posição de valor para um Ego, a linguagem não deixa no entanto de ser o lugar do sentido: o metassocial não é absolutamente o infra individual, o
canto solitário do caçador não é o discurso de um louco e suas palavras não
são gestos. O sentido subsiste, desprovido de toda mensagem, e é em sua
permanência absoluta que repousa o valer da palavra como valor. A linguagem
pode não ser mais a linguagem sem por isso se anular no que não tem sentido,
e cada um pode compreender o canto dos ache, embora de fato nele nada se
diga. Ou antes, o que ele nos convida a escutar é que falar não é sempre
colocar o outro em jogo, que a linguagem pode ser manejada por si mesma e que
ela não se reduz à função que exerce: o canto guaiaqui é a reflexão em si da
linguagem, abolindo o universo social dos signos para dar lugar à eclosão do
sentido como valor absoluto. Não há, portanto, paradoxo no fato de que o mais
inconsciente e o mais coletivo do homem — a sua linguagem — possa ser também
a consciência mais transparente e a dimensão mais liberada. Â disjunção da palavra e do signo no canto
responde a disjunção do homem e do social para o cantor, e a conversão do
sentido em valor é a de um indivíduo em
sujeito de sua solidão. O homem é um animal político, a sociedade não
equivale à soma de seus indivíduos, e a diferença entre a edição que ela não
é e o sistema que a define consiste na troca e na reciprocidade pelas quais
os homens se ligam. Seria inútil lembrar essas trivialidades se não
quiséssemos frisar que se indica o contrário. A saber, precisamente, que se o
homem é um "animal doente" é porque ele não é apenas um
"animal político", e que da sua inquietude nasce o grande desejo
que o habita: o de escapar a uma necessidade apenas vivida como destino e de
rejeitar a obrigação da troca, o de recusar seu ser social para se libertar
de sua condição. Pois é exatamente
no fato de se saberem os homens atravessados e levados pela realidade do
social que se originam o desejo de não se reduzir a ele e a nostalgia de
evadir-se dele. A audição atenta do canto de alguns selvagens nos ensina que
em verdade se trata de um canto geral e que nele é despertado o sonho
universal de não mais sermos o que somos. Situado no próprio âmago da condição humana, o
desejo de aboli-la se realiza apenas como um sonho que se pode traduzir de
múltiplas maneiras, ora como um mito, ora, como entre os guaiaqui, como um
canto. Talvez o canto dos caçadores ache não seja senão seu mito individual.
Em todo o caso, o desejo secreto dos homens demonstra sua impossibilidade
pelo fato de que só podem sonhá-lo, e é apenas no espaço da linguagem que ele
se vem realizar. Ora, essa vizinhança entre sonho e palavra, se marca o
fracasso dos homens em renunciar ao que eles são, significa ao mesmo tempo o
triunfo da linguagem. Apenas ela na verdade pode preencher a dupla missão de
reunir os homens e de quebrar os laços que os unem. Possibilidade única para
eles de transcender sua condição, a linguagem coloca-se então como seu mais-além e as palavras ditas pelo que
valem são a terra natal dos deuses.
Apesar das aparências, é ainda o canto dos
guaiaqui que escutamos. Se chegamos a duvidar disso, não será justamente
porque não compreendemos mais a linguagem? Sem dúvida, não se trata mais aqui
de tradução. No final das contas, o canto dos caçadores ache nos designa um
certo parentesco entre o homem e sua linguagem: mais precisamente um
parentesco tal que parece subsistir apenas no homem primitivo. Isso equivale
a dizer que, bem distante de todo exotismo, o discurso ingênuo dos selvagens
nos obriga a considerar o que poetas e pensadores são os únicos a não
esquecer: que a linguagem não é um simples instrumento, que o homem pode
caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo
excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem civilizado tornou-se
completamente exterior a ele, pois
é para ele apenas um puro meio de comunicação e informação. A qualidade do
sentido e a quantidade dos signos variam em sentido inverso. As culturas
primitivas, ao contrário, mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em
servir-se dela, souberam manter com ela essa relação interior que é já em si mesma aliança com o sagrado. Não há, para
o homem primitivo, linguagem poética, pois sua linguagem já é, em si mesma,
um poema natural em que repousa o valor das palavras. E se falamos do canto
dos guaiaqui como de uma agressão à linguagem, é antes como o abrigo que a
protege que devemos doravante ouvi-la. Mas será que se pode ainda escutar a
lição demasiado forte de miseráveis selvagens errantes sobre o bom uso da
linguagem? Assim vão os índios guaiaquis: de dia andam juntos através da
floresta, homens e mulheres, o arco na frente, o cesto atrás. A vinda da
noite os separa, cada um dedicado a seu
sonho. As mulheres dormem e os caçadores cantam às vezes, solitários.
Pagãos e bárbaros, apenas a morte os salva do resto.6 NOTAS
1.
Ache: autodenominação dos guaiaqui. 2.
Como se poderia esperar, os dois homens panema de que trata mos mantinham em
relação ao canto uma atitude bem diferente; Chachubutawachugi
só cantava por ocasião de certas cerimônias a que estava diretamente ligado,
como, por exemplo, o nascimento de uma criança. Krembégi
jamais cantava. 3.
Pierre Clastres, Chronique des Indiens Guayak, Paris, Pion, 1972. 4.
Uma dezena de anos antes uma cisão havia dividido a tribo dos ache gatu. A
esposa do chefe mantinha relações culposas com um jovem. O marido, muito
irritado, se separara do grupo levando consigo uma parte dos guaiaqui. Ele
chegou a ameaçar massacrar com flechadas aqueles que não o seguissem. Apenas
ao fim de alguns meses foi que o medo de perder sua mulher e a pressão
coletiva dos aché-gatu o levaram a reconhecer o amante de
sua mulher como seu japétyva. 5.
Não se trata de um jogo de palavras: em guaiaqui um mesmo verbo
designa a ação de alimentar-se e a de fazer amor (tyku). 6.
Estudo inicialmente publicado
em L'Homme VI (2), 1966. |